quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

CONTANDO A VIDA 139

Em vésperas de Quaresma, nosso historiador-cronista filosofa sobre as discussões a respeito do sexo de Deus, mas sérias do que supõem alguns. Crônica erudita é outra coisa, né?

SEXO DE DEUS.

José Carlos Sebe Bom Meihy

Em discussões inúteis e sem nexos, sempre ouvimos a expressão “ah, isso é como discutir o sexo dos anjos”. A inutilidade de debates sobre inocuidades conduz a contendas desprezíveis e, nesses casos, uma boa saída é apelar para citações que, afinal, apaziguam ânimos. Em leitura recente, porém, deparei com uma expressão ainda mais complexa, referindo-se também ao universo das questões não resolvíveis: “qual o sexo de Deus?”. O livro em questão é Sexo e Judaísmo, assinado pelo Dr Jayme Landmann, publicado pela Editora da UERJ, Rio de Janeiro, em 1999. São páginas de leitura enredante em que se aventa, pela ótica judaica, a relação entre a reprodução humana e o destino religioso da sociedade. As primeiras páginas discutem o tema da representação de divindades, em particular, como é cabível aos judeus, de “Deus Pai”. Basta esse enunciado para se abrir um universo enorme de dilemas afeitos à imagem de Deus. A qualquer um, mediante a evocação das figurações do Pai, ocorre a cena magnífica do afresco da Capela Sistina, obra exemplar de Michelangelo. A arrebatadora imagem do Pai, com braços estendidos e com o dedo indicador quase tocando o do Filho é de beleza única. A imponência da cena encanta e convence. O cenário teatral do entorno completa o drama onde então um velho barbudo, de longos cabelos brancos e semblante grave, dá sentido a Cristo, filho do Criador em sua missão terrena. Nuvens e anjos em movimento integram a situação que, afinal, fixa a noção de que o Deus Pai é um Senhor severo, soberano e dominador. Sem dúvida, a ideia de um Deus bravo, justiceiro, onipotente, onipresente e onisciente, instruiu lições de catolicismo. O que me impressiona nessa representação é que o rosto tranquilo e amistoso do Filho não convence tanto. A partir de Michelangelo, a imagética religiosa cristã não se cansa de proceder a variações sobre o mesmo tema.

Dr. Landmann, foge do debate sobre a imagem do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Na direção contrária, o que faz é demonstrar que para os judeus interessava destruir a tradição anterior que apregoava a existência de deusas matriarcas. Elegendo o masculino como o sexo do poder, os judeus estabeleceram o monoteísmo com premissa e os homens deveriam agradecer por ser “imagem do Criador” enquanto as mulheres por “ser imagem do espírito”. Mas o sentido da imagem não seria física, mas sim moral. Desde Eva, as mulheres foram associadas aos “desvios dos homens” e por isso próximas do pecado, cabendo ao masculino a condução para evitar males. É verdade que mesmo entre os judeus não há consenso sobre o sexo de Deus. Uns acham que é exclusivamente masculino, outros que é andrógeno, existindo aqueles que o julgam duplo e até mesmo feminino, mas isso não tem a ver com a figura humana, assim, há unanimidade em não aceitar figuração de Deus – como aliás os islâmicos também fazem. A base está na Escritura, exatamente em Deut. 4,12 e 4,15-16 onde fica estabelecido que “para que vós não vos comparais e vos façais alguma escultura, nem alguma semelhança de imagem, figura de macho ou de fêmea”. É obvio que as interpretações variaram, em particular tomando-se por base a passagem do Gên. 1,27 que reza “E criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, macho e fêmea, os criou”. É, pois, por essa interdição que entre os judeus não pode haver representação figurativa do Criador. A imaterialidade do Pai, contudo, é complexa, pois Deus ouve, fala, gesticula, tem pés e mãos, mas não cumpre outras funções humanas como: comer, urinar, defecar. Ao contrário dos deuses gregos, o Pai não teria relações sexuais, família e não seria passível de contradições, dono exclusivo da “verdade e da vida”. Isso intriga e chega a propor uma das heresias mais condenáveis pelos ortodoxos que vêem na mediocridade humana a inversão do caso, pois segundo os “desvidados”, nós humanos é que criamos um Deus à nossa imagem e semelhança. Não deixa de ser irônico encerrar este retraço analítico evocando o debate sobre o sexo dos anjos... ou melhor o sexo de Deus.    

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