quarta-feira, 26 de agosto de 2015

CONTANDO A VIDA 120

Nosso cronista-historiador está meio polêmico hoje! Em meio a considerações sobre o ato de fotografar, ele investe contra os selfies, o que você acha?



A AMEAÇA FOTOGRÁFICA: os selfies.
José Carlos Sebe Bom Meihy
Em termos práticos, na fria composição de elementos conjugados, fotografia é a combinação articulada do fotógrafo com um foco registrado, mediado pela câmera. Mas, isso é pouco para caracterizar um dos produtos mais difundidos do maquinário moderno. Personagens de uma relação na qual um explica o outro – fotógrafo, foto e ato de fotografar – os três só têm razão se vistos em conjunto. E o resultado é a mágica que demanda admiração, mas que aponta para mudanças da aceitação. Não há dúvida que a fotografia fascina, mas continuará assim? A vulgarização de seu uso e a multiplicação ilimitada do acesso comprometem a reputação dos bons fotógrafos. Compromete também a qualidade que não passa mais por crivos analíticos rigorosos.
Em preto e branco ou colorida, as fotos evocam sentimentos, guardam segredos poucas vezes revelados em palavras ou descrições escritas. Isso gera um culto e fundamenta a tal sociedade do espetáculo, proposta por Debord. Além disto, explica o redimensionamento da imagem como fenômeno social. Então, como desafio desdobrado, tanto o ato fotográfico como a foto e o fotógrafo se tornam objeto de admiração. Mas é inegável o abastardamento da fotografia, rebaixada a prática corriqueira pela vulgarização. Não faltam inclusive alarmantes gritas de que a fotografia como arte vai acabar. Com os selfies todos ser acham fotógrafos e isso é comprometedor.
Mas, falemos um pouco dos apreciadores de fotografia. Existem os que se alimentam e se esgotam em prazeres visuais imediatos, e há também os demais, aqueles que insatisfeitos com prazer contido na simplicidade do consumo primeiro, determinam cultos. Uns, se constituem em público; outros em admiradores, seres capazes de outras miradas. Separando os meros espectadores que se descomprometem de mistérios profundos, os exegetas da decifração, investigadores de enigmas inscritos além do produto fascinante dado pela tecnologia, visitam os interiores de um mundo irreal. São os que vêm mais do que imagens, mais mesmo do que vida, enxergam alma nas fotos. Nestes casos, compõem enredos ficcionais e querem saber do autor, dos personagens ou fatos, e assim adivinham luzes, sombras, gestos ocultos, palavras interditas, histórias emblemadas. Nessa senda ganha sentido a perturbadora frase de Henri Cartier-Bresson que mexe com os segredos flagrados pelas câmeras: “a fotografia é uma lição de amor e ódio ao mesmo tempo. É uma metralhadora, mas também é o divã do analista. Uma interrogação e uma afirmação, um sim e um não ao mesmo tempo. Mas é sobretudo um beijo muito cálido”.
Fotos vistas além das imagens estampadas revelam a busca de uma eternidade que poderia ser provisória se não captada. Poeticamente, não se resiste dizer que a fotografia é um protesto do efêmero da vida, e assim se comporta como negação do plano divino que fada tudo ao esquecimento. Registro, documento, arte, o que vale mesmo é a negação do fátuo, passageiro, morredouro. E assim se explica o ângulo ficcional da fotografia. Abre-se um novo cosmo de meditação e nele cabem a liberdade analítica e o direito à curiosidade possível. Ainda que feita por um, a fotografia autoral se converte em algo mais que manifestação pessoal. Vira argumento sociológico, transforma-se em código, força relações dialógicas e se inscrevem em constelações que enfeitiçam seus cultores, promovem mostras, animam exposições, motivam livros.

Não basta mais, para esses, a existência do fotógrafo, da máquina que registra e do modelo ou o fato. Junta-se à unidade fotografada a série, o conjunto, e então o artista se faz como decorrência do processo de produção e escolha dos produtos fotografados. É dessa forma que o curso de elaboração do ato fotográfico seriado acumula eras de sutil amadurecimento. Mas lembremos que a fotografia é também uma ilusão do real. O que se imagina de espontâneo em fotografia é mentira. Nesse dilema reside a diferença entre “ver” e “olhar” que projetados na contemplação de terceiros duplica relações. Sim a fotografia reclama público, convoca audiências e só assim ganha sentido como fato social. Seja como for, atualmente ninguém mais vive sem a fotografia. Mas até quando? Tudo depende de como vamos acolher o ato fotográfico em tempos de selfies. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário