quarta-feira, 11 de junho de 2014

SOBRE PEDRAS NO CAMINHO E CAPACITISMO

Pessoas com deficiência e o mundo ao seu redor

Dificuldades enfrentadas no cotidiano revelam a necessidade de se promover um ambiente plural.

Ariane Alves

Possuir algum tipo de deficiência (motora, visual, auditiva, intelectual o múltipla) sempre foi visto como fonte de problemas de interação, seja com as pessoas que não vivem uma realidade semelhante, seja com os elementos e ferramentas presentes em um mundo que parece não estar preparado para que todos e todas possam nele conviver em harmonia.
Ainda que seja difícil para muitos a aceitação de que nem todos conseguem usufruir de tudo o que se encontra disponível em uma sociedade voltada para pessoas sem nenhum tipo de deficiência, o cenário vem mudando. A criação de leis e estatutos deliberando a aplicação de políticas públicas específicas, bem como a presença de ONGs e órgãos públicos que atuam fortemente na área, são iniciativas que caminham para tornar possível um ambiente mais inclusivo - que possa ser usufruído por todas as pessoas.
Para que essas mudanças ocorram, é necessário vencer certas barreiras. A primeira delas é a acessibilidade. Eliminar as dificuldades de acesso tem sido uma preocupação constante principalmente no campo do transporte, da informática e das construções. Maria Isabel Silva, jornalista e gestora da Assessoria de Comunicação Institucional da Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo, define: “Quando se criam atividades, eventos, produtos e serviços que não são pensados para todos, sempre alguém fica de fora. E, se não há acessibilidade, as pessoas com deficiência ficam excluídas. É como se uma parte da sociedade estivesse ‘fechada’ para esse segmento.”
A segunda barreira, mais importante que a primeira para Maria Isabel, é o preconceito atitudinal, também chamado de capacitismo. O termo é usado para definir a lógica de ação que exclui, subordina e inferioriza as pessoas com deficiência. Equivale ao racismo para as pessoas negras e ao machismo para as mulheres. Muitas vezes, utiliza-se o pretexto de as estar ajudando, mas sempre com uma visão paternalista e hierárquica, como se quem não possuísse deficiência fosse “superior” a quem possui. “Não se deve reduzir a pessoa à sua limitação”, aponta a jornalista.
Por último, há a barreira da comunicação, que se forma quando jornais, revistas, programas de televisão e sites da internet não se fazem acessíveis. Na era da informação, ser impedido de chegar até as notícias de forma autônoma é um problema muito grave. Como exemplo de ações inclusivas, há as opções de legendas em vídeos ou tradução em LIBRAS (Linguagem Brasileira de Sinais), além de versões em áudios para textos da internet.
“A maior minoria do mundo”
Modelo Viktoria Modesta usando perna mecânica desenhada artisticamente por Sophie de Oliveira Barata, idealizadora do “The Alternative Limb Project” (O Projeto do Membro Alternativo) <http://www.thealternativelimbproject.com/#>. Foto: Jon Enoch
Segundo a ONU, as pessoas com deficiência constituem 10% da população mundial (aproximadamente 650 milhões de indivíduos). Isso as torna “a maior minoria do mundo”, pois, em vários momentos, sofrem marginalização e exclusão por grande parte da sociedade, seja por desinformação ou sentimento de superioridade.
A segregação é percebida em vários momentos. No ambiente de trabalho, quando não se tem a falsa impressão de que as pessoas com deficiência são incapazes de realizar suas funções, utiliza-se o subterfúgio dos custos altos para a adaptação. No Brasil, há a Lei de Cotas (Lei 8.213 de 24 de julho 1991), que define, entre outras coisas, uma porcentagem mínima de trabalhadores com deficiência dentro de toda empresa privada. Porém, mesmo a Lei não garante o acesso pleno ao mercado de trabalho. “Se uma pessoa é contratada por uma empresa e não encontra um ambiente receptivo, pessoas dispostas a dar oportunidade a ela de aprender e desenvolver seu trabalho, terá aí um obstáculo”, comenta Maria Isabel. “A empresa estará cumprindo a Lei, mas não vai acontecer inclusão”.
Possuir algum tipo de deficiência também é um fator potencializador da exclusão de pessoas com baixa renda, pois cumprir uma rotina comum se torna algo muito mais difícil. Lugares que permitem acesso total são raros e a maior parte está localizada em bairros de classe alta. Bares, restaurantes, shoppings, teatros, cinemas, etc. não são, na maioria das vezes, pensados de forma inclusiva, e devem fazer as adaptações sob altos custos posteriormente.
Desenho Universal
Cozinha com desenho universal planejada pela marca italiana Snaidero. Foto: Divulgação/Snaidero
O termo Desenho Universal (ou ainda Desenho Total/Inclusivo), conforme o Decreto 5296/04, é a “concepção de espaços, artefatos e produtos que visam atender simultaneamente todas as pessoas, com diferentes características antropométricas (relativas às medidas do corpo humano) e sensoriais, de forma autônoma, segura e confortável, constituindo-se nos elementos ou soluções que compõem a acessibilidade”. Entre os exemplos, podemos citar portas com sensor de movimento, cadeiras e poltronas de tamanhos grandes e a utilização de Braille e letras em relevo para informativos.
Além disso, há formas muito positivas de aceitar a condição de possuir deficiência. É o caso do “The Alternative Limb Project” (O Projeto do Membro Alternativo), idealizado pela designer de próteses Sophie de Oliveira Barata e que cria membros artificiais customizados e artisticamente elaborados. Entre os modelos, que variam de pernas cristalizadas a braços em formato de serpentes, há também a opção de membros realistas, para quem deseja algo com a aparência similar aos membros biológicos.
Todas essas alternativas caminham para promover um ambiente inclusivo e eliminar a lógica capacitista. Para a jornalista Flávia Vital, que usa cadeira de rodas há 10 anos, as cidades não estão preparadas como deveriam para receber todas as pessoas de forma não conflituosa. Em sua visão, é o ambiente em si que não promove a inclusão. “Quando você tem um planejamento na cidade que prioriza não só a acessibilidade, mas toda a mobilidade urbana, onde todo mundo que usa a cidade possa participar em igualdade de condições, a inclusão é feita naturalmente”, afirma.
Pedras no meio do caminho
Trecho rebaixado na calçada da Rua Itapeva com sérios problemas de acesso. Foto: Projeto “Guardiões das Calçadas”
A rotina estressante de São Paulo contribui para que as falhas no sistema de acessibilidade seja prejudicial para os dois lados. Flávia coordena o setor de Transportes da Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência e critica a presença de ônibus com elevadores, que demandam um tempo longo de operação, habilidade por parte do cobrador ou motorista, e possuem um sistema complexo e facilmente danificável. A melhor opção é o piso baixo, de fácil operação e que demanda um tempo curto para concluir a entrada da pessoa com cadeira de rodas no veículo. Quando um ônibus com elevador para no período da manhã e inicia sua operação, exemplifica Flávia, acaba gerando um mal estar tanto nos passageiros que aguardam, quanto na pessoa que se vê adentrando um ambiente constrangedor. “É uma série de incômodos que geram um descontamento de estar próximo a uma pessoa com cadeira de rodas”, comenta. Além disso, há as calçadas com rebaixamento, que são feitas de pedra portuguesa, um material de difícil manutenção e que frequentemente se encontra danificado. Flávia chama este tipo de calçada de “liquidificador de cadeirante”, pois torna o acesso à calçada extremamente difícil e prejudicial.
A jornalista cita ainda pequenas cenas do cotidiano que se tornam verdadeiros fardos para as pessoas com deficiência. O simples fato de entrar em um restaurante torna-se um constrangimento por ter que mobilizar muitas vezes tanto os funcionários quanto alguns clientes para que todos se acomodem. Além disso, o fato de serem poucos os ambientes privados com as adaptações adequadas limita ainda mais seu o cotidiano. “Em São Paulo, há trilhões de restaurantes. A gente sempre vai nos mesmos”, aponta. Flávia cita a Pinacoteca, o Centro Cultural São Paulo e as unidades do Sesc como lugares acessíveis, aonde a pessoa pode “ir sem medo”.
À exceção de casos de negligência na adaptação e falhas em aplicações práticas de certos projetos, grande parte das iniciativas de inclusão já existentes vêm mostrando resultados positivos e servem de exemplo para o futuro. Flávia comenta que, quando víamos personagens com deficiência em filmes e novelas, sempre aconteciam “milagres” que os faziam andar, enxergar, escutar, etc. Mas, hoje, já estamos nos acostumando a ver trajetórias mostrando que “a deficiência não é a melhor, mas também não é a pior coisa do mundo. Ninguém deixa de viver por conta da sua deficiência”.

“Evite o Capacitismo! - Terminologias para promover um ambiente inclusivo e não discriminatório”
- “Especial”, “excepcional”, “dito-normal” e “anormal” não devem ser utilizados, pois, se todos somos diferentes, como designar os “especiais”?
- Deficiência não é doença e, muito menos, “transmissível”
- A palavra “deficiente” não deve ser utilizada como substantivo, pois passa a impressão de que a pessoa inteira é deficiente, e não que apenas possui a condição
- Evite generalizações para se referis às pessoas com deficiência. Elas são, acima de tudo, pessoas, com talentos aptidões e falhas de caráter como qualquer outra.

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