sexta-feira, 2 de agosto de 2013

PAPIRO VIRTUAL 61





Roberto Rillo Bíscaro

Ao escrever sobre a minissérie Little Dorrit, alfinetei a insipidez da personagem-título. Terminada a leitura do sombrio romance de Charles Dickens - serializado entre 1855-57 – continuo preferindo Amy Winehouse à Amy Dorrit, assim como prefiro Bleak House à crítica dickensiana à burocracia britânica.
Little Dorrit nasceu na prisão de Marshalsea, especializada em receber devedores. O pai da moça estava encarcerado há décadas quando começa a narrativa e tornara-se figura nobilitaria na hierarquia da cadeia, nutrindo assunções de sangue-azul, endossadas pelo zelo, submissão e trabalho extenuante de Little Dorrit para manter as ilusões do papai.
A jovem trabalhava na casa de Mrs. Clennam, sinistra negociante paraplégica, cujas atividades nunca são aclaradas. A velha tem um filho sem sal, Arthur, com o qual não mantém relação quase alguma, haja vista o herdeiro ter passado boa parte da vida na China. Ao retornar à Inglaterra, os destinos de Arthur e Little Dorrit se cruzarão e revelações e reviravoltas terão lugar, em ritmo não muito veloz. Isso empaca a leitura, mormente quando a morosidade se sobrepõe ao sentimentalismo datado de Dickens.
Little Dorrit crítica os efeitos da burocracia, do nepotismo e da ineficácia da máquina governamental na vida dos cidadãos, ou pelo menos, na de quem não usufrui de contatos nas esferas políticas. Isso gera momentos ímpares, prenúncios becketianos, inclusive, mas, tudo acaba na vala comum de investir contra “os políticos”, como se todos fossem a mesma coisa. Lembra certo país grandão da América do Sul.
Meu respeito e admiração por Charles Dickens jazem em sua descrição, singular pra época, do estágio capitalista em que a Inglaterra se encontrava. A ciranda financeira rodada pelo incensado Mr. Merdle, que despiroca, levando tantos à ruína e circularizando as trajetórias de Arthur Clennam e da família Dorrit é demonstrativo da escassez de autonomia individual perante as questões realmente consequentes, relacionadas ao capital. Essa parte crucial do enredo, aliás, contradiz muito da insistência na liberdade de escolha e responsabilidade individual, constituintes de fatia do material.
E como não cogitar se o sobrenome Merdle não foi sacanagem com o termo francês pra merda?
Ler Dickens sem atentar pra linguagem enfraquece muito a fruição de sua escrita. Tudo bem que o escritor cai na convenção de criar um inglês totalmente dentro da norma culta à provavelmente pouco instruída Little Dorrit. Todo mundo no ambiente dos Dorrit, exceto eles, desvia da norma linguística. Isso torna-os mais merecedores da fortuna, como se esta voltasse às mãos de quem merece, por ser “superior”. Aquela velha ilusão de ascensão/mobilidade social tão comum nos folhetins.
Dickens incorpora elementos imagéticos e sonoros, naquele tempo ainda recentes, do capitalismo industrial. Descreve os ruídos da fábrica com palavras tipo clink, thump. Mais de 100 anos antes do Kraftwerk nomear seu estúdio-oficina Kling Klang.
Flora, 40tona que quer passar por moçoila já tem falas onde as vírgulas são suprimidas pra reproduzir a torrente verborrágica. Joyce radicalizaria isso em Ulysses.
Dickens era o cara!

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