segunda-feira, 19 de agosto de 2013

CAIXA DE MÚSICA 99


Roberto Rillo Bíscaro

Difícil aceitar que um músico fundamental como Burt Bacharach tenha ficado praticamente 2 décadas sem lançar álbuns. Entre 1979 e 1998, o inventor duma sonoridade particular e imitada compôs apenas canções soltas.
Quando o norte-americano juntou-se – via fax e secretária-eletrônica – ao inglês Elvis Costelo pra compor God Give Me Strenght pra trilha sonora do filme Grace of My Heart (1996) o casamento deu tão certo que a dupla resolveu trabalhar num álbum colaborativo. Burt entrou com melodias e arranjos e o pós-punk Costelo com letras e vocais.
O resultado foi um sucesso de crítica. Painted From Memory seguiu as pistas de God Give Me Strenght, lenta rasgada que traz todas as marcas registradas de Bacharach (aquela cornetinha que amo tanto, tanto!) e a interpretação sentida fundo de Elvis, com seu característico trinado, como diz minha mãe. As letras também seguem a dor da perda e de cotovelo da canção do filme, que, aliás, fecha Painted From Memory.

Bacharach estava faminto por compor, porque o álbum não apresenta nenhum momento baixo; é como se a represa criativa contida durante anos estourasse e ele estivesse de volta ao seu período áureo dos anos 60/70.
Isso não significa que Painted From Memory seja exercício passadista. Toledo é inconfundivelmente bacharianna clássica, mas com os valores de produção noventista. A letra sobre sensação de culpa após infidelidade não destoa dos relacionamentos problemáticos ou terminados descritos pelas precisas palavras de Costelo.
A melancolia temática de Painted From Memory não o torna sombrio musicalmente. Pelo contrário. Tears at the Birthday Party é sobre uma fixação amorosa infantil que persiste na idade adulta, mas a fluidez da melodia e a leveza dos arranjos enganam quem não entende inglês e amenizam a morbidez do tema pra quem entende. Deslumbre confeitado. A sutileza de Burt Bacharach gerou o rótulo de easy listening, que o perseguiu pejorativamente durante o período anterior a sua reavaliação e justa elevação à posição de um dos compositores populares mais importantes do século XX, como Gershwin, Lennon & McCartney ou Jobim.

Em meio a material de tão alta qualidade, há uma obra-prima: This House is Empty Now. A letra sobre um pós-divórcio fotografa a casa de dentro, de fora, aproxima molduras e chaves, mas também registra angústias e dúvidas para num momento magistral focar a lente nos amigos do ex-casal, que devem escolher qual partido tomar. Ronan Keating tateou numa releitura, mas a canção é nuançada demais pra ele (leia resenha do álbum aqui). Ainda não ouvi cover que supere a torrente emocional de Elvis Costelo, irrepreensível no álbum todo, na verdade.
Painted From Memory não sai de minha memória e sempre me acompanha como trilha, mas a motivação pra escrever sobre nasceu duma descoberta no You Tube. O documentário Because It's a Lonely World (1998), produzido pelo Channel 4 inglês sobre o álbum. Burt e Elvis explicam sua gênese e detalham a composição e a produção. As falas são entremeadas por interpretações de algumas das faixas.
A imagem está ruim, mas o programa é imperdível. Mesmo que você não entenda inglês, deixe os depoimentos de lado e deleite-se com Elvis Costelo de gravatinha borboleta e barbeado; Burt ao piano, contorcendo-se como de praxe; as excelentes garotas dos vocais de apoio e a orquestra grandiosa. E de quebra, uma arrasante interpretação de Anyone Who Had a Heart, da fase do letrista Hal David e da cantora Dionne Warwick. Se bem que meu sonho é ouvir isso na voz de Morrissey, mas acho que não vai rolar.

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