quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

CONTANDO A VIDA 267

CARNAVAL DESENGANO? 

José Carlos Sebe Bom Meihy 

Chico Buarque de Hollanda, como se sabe, é compositor dos melhores, celebrado em diversos quadrantes, principalmente pela harmonia equilibrada entre música e letra. Não tem como deixar de admirá-lo seja pelo domínio da métrica exata, seja pela rima perfeita. Assim, é consagrado como dos mais significativos compositores populares em língua portuguesa. Há, porém, algo mais a ser respeitado em termos de expressão cantante: o significado metafórico trocado em miúdos. Por certo, o aprendizado com a censura nos “anos de chumbo” valeu como experiência que ambientou sua atividade. E são canções que falam de paixões, amores clandestinos, tristezas de miseráveis, mas também de alegrias de convívio. Tudo com destreza e comprometimentos. Concordemos ou não com ele, seu posicionamento político é constante, intenso e coerente. Mapear a obra desse mago das palavras é tarefa exigente, e tem sido feita em artigos, dissertações e teses. Num rápido voo, porém, em audácia desmedida, evoco o sentido do carnaval em sua vasta produção e busco nesse conjunto reflexões sobre a passagem do tempo na cultura brasileira, em particular sob o regime dos militares. Esta aventura, diga-se, requer acatar a sutileza inerente à discussão sobre o sentido do carnaval na cultura brasileira. 

Grosso modo, presidem duas teses explicativas sobre aquele que é o maior ritual festivo do planeta. O carnaval para alguns autores, em particular para o mais difundido e badalado antropólogo brasileiro, é uma celebração que leva em conta a “inversão do cotidiano”. Roberto DaMatta explica suas teorias supondo a dramatização coletiva de uma cultura que dramatiza os dilemas da vida cotidiana num ritual dançante, onde grupos assumem a suspensão dos comandos diários e, de forma “extraordinária”, transformam suas práticas em alegorias contrárias. A permissividade é a regra que autoriza mudanças que permitem, por exemplo, que a tristeza se transforme em alegria e na suspensão do tempo “ordinário”, pobre seja rico, conde ou rei, citadinos virem índios... A associação da permissividade com liberação sensual é autorizada, e o uso da pouca roupa se justifica no verão brasileiro, sugerindo fuga da repressão constante nos demais dias do calendário. Ainda que bastante fotogênica e aceita, a tese de DaMatta é rebatida por outro antropólogo, Renato Ortiz, que se contrapõe mostrando que em vez de “inverter o cotidiano”, o carnaval o consagra e mostra que as instituições controladoras não deixam de exercer suas funções. O estado continua a existir com instâncias de comando e por meio de seu mando, polícia, hospitais, clubes, se submetem às leis que não cessam e nem se interrompem. É sob este paradoxo interpretativo que se coloca a questão das músicas de Chico Buarque. Pergunta-se, então, como ele se 
comportaria no caso das duas teorias. 

Tema frequente nas canções do compositor, o carnaval apareceu pela primeira vez no elenco das músicas buarquianas em 1965, com uma canção que aparece com dois títulos: “Sonho de Carnaval” e “Quando o Carnaval Chegar”, e, suas primeiras palavras alertam para a inevitabilidade do que acontecerá depois do carnaval político. Estava dado o recado de forma capaz de vazar a censura e alertar os sambistas, ou melhor, o povo: Carnaval, desengano/ Deixei a dor em casa me esperando/ E brinquei e gritei e fui vestido de rei” e logo vem a advertência “Quarta-feira sempre desce o pano/ Carnaval, desengano”. A continuidade da música depois de passar por um significativo “Mão na mão, pé no chão/ E hoje nem lembra não” retoma “Quarta-feira sempre desce o pano”. 

Não sem intenção, no ano seguinte, em 1966, já sentindo que os militares chegaram para ficar, Chico compôs o profético “Vai passar” que, afinal, era resposta do próprio autor à censura que havia proibido algumas de suas canções. A picardia mais aguçada se apresentou na composição que metaforizava a superação daqueles dias autoritários e anunciava “Vai passar/ Nessa avenida um samba popular/ Cada paralelepípedo/ Da velha cidade/ Essa noite vai/ Se arrepiar/ Ao lembrar/ Que aqui passaram/ sambas imortais” e de maneira sutil garantia que “Que aqui sangraram pelos nossos pés/ Que aqui sambaram/ nossos ancestrais”. E a continuidade evoca a instalação do governo militar “Num tempo/ Página infeliz da nossa história/ Passagem desbotada na memória/ Das nossas novas gerações”. A sequência é bastante eloquente e direta ao mostrar que “Dormia/ A nossa pátria mãe tão distraída/ Sem perceber que era subtraída/ Em tenebrosas transações”, e, novamente comparando o regime ao governo deixava claro que aquele momento (que haveria de passar) “se chamava carnaval”, mas que “Vai passar”. 

No mesmo ano, em 1966, desponta o “Quem é você”, canção que garante a identificação do carnaval com o regime militar e assume tacitamente “Mas é Carnaval!/ Não me diga mais quem é você!” e de forma desafiadora pontifica “Amanhã tudo volta ao normal/ Deixa a festa acabar/ Deixa o barco correr”. Depois de poéticas indagações, o autor encerra sua dissertação dizendo, como que evocando a história “Quem é você?/ Por que te amo sem querer/ Alguém, por mim/ Me faça enfim te conhecer/ Pra ter um fim”. 

Na abertura dos anos 70, Chico Buarque colocava a público, já sem sutileza alguma, o samba “Apesar de você” e entusiasmado assumia “Hoje você é quem manda/ Falou, tá falado/ Não tem discussão/ A minha gente hoje anda/ Falando de lado/ E olhando pro chão, viu/ Você que inventou esse estado/ E inventou de inventar/ Toda a escuridão/ Você que inventou o pecado/ Esqueceu-se de inventar o perdão”. Sem se referir ao carnaval, ficava subentendido o sentido da festa como argumento político. 

Ainda que fazendo muitas outras canções aludindo ao carnaval, falando de tamborins, pandeiros, é com uma canção de 1979 que ele define o papel do festival no amplo arco de suas canções e o faz com “Ela desatinou”. Debochando da dor, do pecado, do tempo perdido, do jogo acabado, Chico Buarque, curiosamente, passada a abertura política e a volta à democracia não mais usou o carnaval diretamente em suas letras. Por certo, continua como baluarte da democracia e crítico, mas suas temáticas também evoluíram como o próprio tríduo.

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