segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

CAIXA DE MÚSICA 354


Roberto Rillo Bíscaro

São Patrício é o santo padroeiro da Irlanda. Missionário, no século III, a crença popular atribui a ele o desaparecimento das cobras da ilha onde fica o país, sendo a razão de em algumas gravuras ele aparecer esmagando esses animais com seu cajado. Muito reverenciado nos Estados Unidos devido ao grande número de imigrantes irlandeses, no dia 17 de março, há diversas comemorações lá e na Irlanda, em sua memória.
Rafael Senra adora música celta e nasceu precisamente no dia 17 de março. Esses fatores foram predominantes para que seu primeiro álbum consistisse em versões em português para onze músicas celtas irlandesas dos séculos XVIII e XIX. Além disso, Canções de São Patrício (2017) tem duas composições próprias, que dialogam com o projeto em certa medida.
Tocando apenas seu violão, a voz doce de Senra embala lindas melodias, como em A Sereia e o Mar e Me Conte a História. Difícil não ligar o mineiro à doçura folk do Anthony Philips, dos anos 70. Fãs da irlandesa Enya reconhecerão as melodias de Seus Poemas e Castelos de Mármore, presentes em seus álbuns dos anos 90, fase de seu auge comercial. O Jardim não deixa dúvida sobre a influência que a pagã música celta teve nos hinos da Igreja Anglicana, essa criação de Henrique VIII, que, mesmo bem anterior aos séculos de onde Senra pinçou seu repertório, aparece como fantasmagoria simbólica. Três Corvos ecoa Greensleeves, cuja autoria anônima a adoração popular pelo absolutismo monárquico sempre atribuiu ao pai de Elizabeth I. A música tem o poder de entrelaçar povos que se estranharam militarmente por séculos.
Doutor em literatura, as letras de Rafael transbordam em aliterações, assonâncias, sinestesias e alecrim, criando mundos paralelos de calma pastoral, onde a inclusão de poemas musicados de nosso árcade Glauceste Saturnio faz todo sentido. Mas, mesmo optando por se refugiar no século XVIII irlandês e brasileiro, Senra é menino pós-moderno: A Lira é um mesh up de duas cançonetas de Glauceste (Claudio Manoel da Costa).
Em um álbum outonal, cujas faixas melancolizam o ouvinte, a letra de Sinas Gerais, faixa de abertura, dolorosamente nos lembra que a idealização da tranquilidade árcade não tem total guarida nas Minas Gerais pós-Mariana e Brumadinho: “Homens vão e permanece o chão/das montanhas e serras de onde eu vim/saudades brotam feito alecrim/cascatas levam meu choro, enfim/homens vão e permanece o chão/sinas, sinas, essas gerais/cavando as minas, olhando nos vitrais/choram as mães e choram os pais”.
Belo e comovente, Canções de São Patrício não escapole de nosso momento, mas o faz gentilmente, convocando utopias, que enternecem e nos ajudam a viver. 
Raphael Gimenes esteve envolvido com música desde a infância, quando cantava no coro infantil de uma igreja, em sua nativa Recife. Ainda adolescente, aprendeu violão e piano e foi para a Dinamarca, como intercambista. Lá decidiu viver e essa distância geográfica do Brasil talvez seja um dos motivos pelos quais seu álbum de estreia, Raphael Gimenes & As Montanhas de Som (2016), soe como MPB dos anos 70 preservada em âmbar. Do overdub nos vocais à sensação de música da floresta, tudo ecoa uma época de Dori Caymmis e afins. E isso não significa pastiche ou coisa de “gringo” macaqueando nosso som.
A coesão e arranjos luxuriantes da dúzia de faixas denotam projeto estético rigorosamente calculado e executado por quem conhece bem o mundo sonoro que escolheu habitar, ou melhor, criar. Guimarães Rose construía sua própria natureza em textos como São Marcos. Gimenes e seus músicos plantam florestas e cerrados sônicos a partir de melodias no violão, circundados por uma profusão de instrumentos acústicos e um sem-número de penduricalhos percussivos, que dão ao som fluência e mistério, em um mundo de calmaria de corredeira de ravina, porque não existe som de bateria. Para completar a aura natural, todo o trabalho, que parece o desenvolvimento de uma grande suíte, apresenta sons de vento, água e fartura de gorjeios, chilros, trilos, trinados, pipilos e pipios.    

Com sua voz calma e fundindo ritmos regionais, jazz, erudito e até lufadinha psych lá mais para o fim, Raphael Gimenes fez um dos melhores álbuns de MPB anos 1970, gravados no século XXI. 

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