quarta-feira, 14 de março de 2018

CONTANDO A VIDA 225

REINVENTANDO MONTEIRO LOBATO: desafio urgente.

José Carlos Sebe Bom Meihy

Muito já foi dito sobre Lobato, mas por mais que se tenha escrito, falado, debatido, parece que a vida desse personagem é mesmo um poço sem fundo. Sem dúvidas, o fato de ter produzido o maior e mais consequente conjunto de obras, no Brasil e na América Latina, ditas “para crianças”, é motivo para exclamações multiplicadas. E justas. A criatividade expressa nas variações de personagens e circunstâncias narrativas é inegável. Inesgotáveis casos, sempre dotados de tensão e humor fazem da “turma do Sítio” um convite ás releituras. Cabe, para o perfil desse escritor ainda hoje tido entre nossos cinco maiores, todos os lugares comuns que o qualificam: grande, eterno, brilhante. Vale, contudo, acrescer a tais predicados alguns aspectos críticos e, entre tantos, destaca-se o monocórdico teor exaltativo. Não que o “taubateano rebelde” não merecesse a ladainha de elogios que lhe é devotada. “Ora pro nobis” afora, questiona-se a existência de um “lado B” dessa construção heroica. É mais do que justo que, a par da “obra infantil” leve-se em conta que foi ele quem projetou algumas das patologias sociais relativas aos problemas do homem do campo, deu dimensão pública a questão do livro no Brasil, se meteu em intrincado debate com os modernistas, enfrentou o problema da exploração do ferro e do petróleo. Não restam dúvidas, enfim, que foi notável homem público. Ironicamente, porém, tais predicados conspiram de maneira incoerente contra sua reconstrução biográfica. Morto em 1948 – portanto há quase 70 anos – poucos se aventuram no retraço de sua experiência pessoal. O Lobato que se conhece é despido de condições humanas e sempre mostrado como personagem lógico, nacionalista, campeão da defesa nacional. Não que não seja, mas, no momento atual, não cabe mais divinizá-lo como figura sem sombras. José Bento Monteiro Lobato foi, também, um ser humano suscetível aos vieses de seu tempo.
Depois de apedrejado recentemente por racista e de tê-lo enquadrado em molduras explicativas eugenistas, remete-se ao ser inconstante que foi. Socialmente filho de segmento conservador, membro de uma oligarquia atormentada pelo contexto agrícola, cabia a Lobato lutar por um posto melhor para seu clã elitista. E não poderia ser de outra forma, posto ser parte de um todo que perdia o controle da dominação política. Saindo do campo para a cidade, do interior para a capital, Lobato teve que conviver com as contradições inerentes a quantos buscavam reclassificação no cenário de lideranças classistas. Tal consideração exige que sejam levadas em conta as múltiplas posições ensaiadas pelo profícuo escritor. Ele, politicamente, experimentou tudo, absolutamente tudo: foi sim próximo de posições: monarquista, republicano, comunista, georgista, anarquista, nacionalista. Em favor de uma leitura favorável, convém ver nessas fases a valentia de um Diógenes que buscava, com sua lanterna, iluminar caminhos. Não cabe mais simplificar Lobato como herói coerente e linear. Pelo contrário, o que precisamos é mudar o foco, e vê-lo grande homem exatamente por demorar a ter opinião final, fato que apenas ocorreu no fim da vida.
Uma das consequências mais exuberantes do “novo perfil” de Monteiro Lobato, convida ao entendimento de sua posição em vista do caipira e dos negros. É muito pouco identificá-lo como opressor de camponeses ou racista. Sem levar em conta o momento e a conjuntura das produções desse tipo de ideias e imagens, pode-se ter visão deformada e rasa do posicionamento de Lobato. É pouco dizer que ele é/foi racista, por exemplo. Não dá para destacar uma ou algumas frases e concluir sobre teorias acatadas fora de sua época. É exatamente sob este pressuposto que se evoca a necessidade de uma boa e nova biografia de Lobato. Tendo em mira a necessidade de vê-lo em seu meio, reclama-se de destaques inconsequentes frente entendimentos que não podem mais ficar fora da pauta analítica da cultura brasileira.
A fim de dar um exemplo da tramitação de Lobato nas lides de sua época vale lembrar que ele fez sim, em 1928 apologia a Ku-klux-Klan (“Paiz de mestiços onde o branco não tem força para organizar uma Klux-Klan, é paiz perdido para altos destinos”). Convém dizer que mais tarde, já no final da vida, já maduro e definido com cidadão, depois de ter passado pelas tais fases controversas, Lobato resolveu desligar-se do Conselho Consultivo da Associação Brasil-Estados Unidos, usando, conta o ditador Vargas, o seguinte argumento, em 1946, “como verifiquei que os americanos fazem a maior das guerras ao fascino na Europa e dão todo apoio moral e material ao fascismo aqui, achei de bom conselho não contribuir para a união cultural entre os dois povos, de medo que brasileiro acabe ainda mais sem-vergonha do que é”.         
É lastimável que nossa crítica acadêmica ainda não tenha se inclinado à revisão biográfica de Lobato. Mais lastimável ainda que em sua terra natal não tenhamos especialistas ou centro de pesquisas habilitados à atualização de mitos que, se continuarem como estão, apenas concorrem para a perpetuação de uma imagem heroica que será demolida pela crueldade de argumentos ditos “politicamente corretos”.  

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