terça-feira, 17 de novembro de 2015

TELINHA QUENTE 186

Roberto Rillo Bíscaro

A nanica Dinamarca tinha opinião inflacionada sobre si. A Dannebrog, a bandeira nacional, acredita-se ter sido enviada diretamente do céu, durante uma batalha na Estônia, no século XIII. Orgulho nacional é salutar, mas em 1864 a península da Jutlândia encasquetou que podia derrotar a Toda-Poderosa Prússia, que ainda por cima estava aliada com a então grandona Áustria, numa guerra pelo domínio dos ducados de Schleswig-Holstein, que sequer se identificavam como daneses. Nessa disputa de Davi contra Golias, o pequenino foi massacrado pelo gigante. A Dinamarca perdeu 25% de seu território pra futura Alemanha e as sandálias da humildade serviram pra que a nação se retraísse, retraçasse seu caminho e só voltasse a combater fora de seu território mais de um século depois.
Ano passado, a TV estatal dinamarquesa produziu e exibiu os 8 episódios da minissérie 1864, que recria o período e conta 2 histórias pessoais pra deixar o conteúdo histórico dramatizável. Ou por ter mexido em feridas nacionalistas ou por inadequações históricas, o show foi hostilizado domesticamente, mas chegou à TV britânica, faminta por Scandi Drama. 1864 é a série mais cara da TV dinamarquesa e prova que nem sempre isso é tão importante. Sem ser ruim, perde em criatividade e poder de influenciar pra conterrâneas mais baratas como Forbrydelsen e Borgen, as quais recomendo primeiro pra neófitos em TV escandinava.
O delírio nacionalista que via a Dinamarca como escolhida por Deus pra vencer e miopizava a elite política, religiosa e artística pra pequenez dinamarquesa perante o gigantismo prussiano é muito bem retratado em falas e posto no interessante ângulo do reacionarismo versus liberalismo. No contexto discursivo da sustentação ideológica pra guerra, ser contra o conflito configurava-se como reaça em contrapartida às aspirações “modernizantes” do governo dinamarquês, que se via na vanguarda europeia com algumas noções liberais mal deglutidas.
Quem paga as maquinações, manipulações e megalomanias duma minoria é sempre uma maioria pobre e manobrada/manobrável ou aquela parte que se considera elite, mas está meio afastada do centro de poder a ponto de poder se dar ao luxo de insuflar contendas, sem necessariamente perder ninguém nelas. Nesse ponto, 1864 é maniqueísta, mas pelo menos acerta em mostrar uma Dinamarca lindinha de cartão-postal campesino, mas infestada de piolhos. Por fora, bela viola; por dentro, pão bolorento.
As cenas de guerra são muito realistas e impressionam, mas também enjoam um bocado; dava pra enxugar e fazer em 7 capítulos. Deve ter sido a primeira vez que vi a Alemanha – na época Prússia, mas quem liga? – no papel de agredida; mas quando resolve dar o troco, sai da frente.
Paralelo a isso, a história de 2 irmãos campesinos em romance com a filha supostamente muito especial (não vi nada demais em Inge) do capataz das terras do barão regional (que não pode escapar de ter filho enviado ao campo de batalha). Ambicioso, o roteiro adicionou uma camada contemporânea à trama na forma de uma garota de nosso século, cheia de piercings e revoltada com a perda do irmão no Iraque – a limpeza e (aparente) paz da Dinamarca de hoje são possíveis porque a sujeira e a violência estão em outros locais -, “condenada” a auxiliar o velho barão local. Ao descobrir um diário numa caixa facilmente acessível, a guria encontrou as memórias de Inge, há muito fora do radar do ancião. A narrativa no passado resulta, portanto, da leitura do diário, ou seja, o ponto de vista é do Inge. Uma coincidência forçada demais e jamais explicada marmelizou um pouco o núcleo contemporâneo.
Outra coisa que pode desagradar os mais materialistas é a inclusão desnecessária dum personagem com poderes místicos, de cura, de premonição. Isso azeda o molho histórico e acaba funcionando como deus ex machina em um par de situações. Contradição prum mundo histórico que prova a todo segundo a inexistência de deuses ex machinas!
1864 é pictoricamente muito bonita, tem diversos atores queridos de fãs de Nordic Noir e Scandi Drama, é bem atuada e interessante. Só não é ótima; mas se formos ver só o ótimo veríamos pouco. 

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