quarta-feira, 24 de novembro de 2021

CONTANDO A VIDA 367

RACISMO: AS LEIS E O COMPORTAMENTO.

José Carlos Sebe Bom Meihy

Ledo engano pensar que a crescente onda contra o racismo no Brasil é fenômeno recente. Nada! A luta é antiga e cheia de nuanças que vão bem além de enquadramentos esquemáticos, querelas que se perdem em detalhes conceituais ou indicações de exceções. Hoje fala-se muito em referências, mas algumas delas poderiam ser recuperadas a partir de situações empalidecidas, nem sempre evocadas. E convém garantir de saída que o problema é não só do povo preto. Não mesmo, pois racismo é doença do tecido social. Todos estamos implicados e é tarefa coletiva apagar esta sombra que nos persegue historicamente.

O adjetivo “estrutural” tem qualificado o debate, mas ele não é suficiente para explicar atitudes que vem ganhando regramentos, denúncias e condenações. Isto, aliás, é quase nada. O caminho da consciência antirracista é manhoso e exige argumentos capazes de extrapolar o espírito das palavras. Precisamos estudar, pesquisar, apontar gargalos e assumir estratégias eficientes no combate ao vexaminoso comportamento perversamente colado na nossa formação desde o amanhecer colonial.

Com mais vigor, o combate ao racismo despontou no Brasil a partir dos anos de 1930. A ditadura do Estado Novo em 1937 tratou de mitigar conquistas, mas bastou a fase democrática se abrir depois de 1945 para que o combate retornasse, implicando inclusive discussão na Constituinte de 1946, ainda que as propostas não lograssem êxito. De toda forma, novas andanças sucederam, algumas até notadas internacionalmente, quando em 1948 o Brasil fez-se signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em termos práticos a Constituição de 1967 e a Emenda de 1969 deram contorno nacional definitivo ao problema. Nesse esforço a Constituição de 1988 se fez grandiosa e vem sendo melhorada progressivamente.

Todo este tortuoso trajeto teve momento fatal na Abolição dos escravos, recurso espetaculoso que pouco – ou nada – resultou em favor da inclusão dos cerca de 700 mil libertados, no 13 de maio de 1888. O vazio de programas legou a população liberada à própria sorte. Some-se a isso resultados da decadência do café, esgotamento das instituições civis, prejuízos acumulados pelas guerras do Paraguai e Canudos, deslocamentos populacionais. A iminência do fim do Império suscitou a Proclamação atabalhoada da República que, aliás, teve um militar, monarquista, como líder.

No ambiente confuso da mudança de regime, as urgências demandavam reordenamento das elites e a obsessão pelo poder empurrava os despossuídos, principalmente os negros, para as periferias onde estão, em maioria desproporcional até hoje. E os dados são irrefutáveis: 54% da população é negra segundo dados do IBGE; o número de encarcerados pretos ou pardos excede 67%; os favelados somam mais de 74%, os magistrados não perfazem 2%, e 6 em cada criança morta na primeira infância é negra.

Nem é preciso insistir na originalidade do comportamento cultural do nosso racismo. O disfarce sempre foi marca que nos mostrava como estrangeiro o autêntico preconceito. Assim como decantávamos nossa “tolerância” (palavrinha complicada, não?!) nos era fácil indicar que nos Estados Unidos, sim, havia racismo. A constatação das diferenças entre o entendimento distintivo do tratamento racial, contudo, pode ser mais bem avaliado quando são considerados momentos fundamentais da exposição pública do problema. E nada mais explícito que contrastar o combate ao racismo aqui e alhures.

Há um caso notável na experiência do nosso racismo que se presta a isso. Corria o ano de 1950, no mês de julho, numa noite particularmente fria, a dançarina norte-americana Katherine Dunham se apresentava no Teatro Municipal em São Paulo. Com sua equipe, fizera reserva no Hotel Esplanada, então o mais reputado da capital paulista. O espetáculo era aguardado, pois remetia a exibição incomum entre nós de danças africanas em espaço da elite requintada. Além disto, a apresentação era comandada pela mais aclamada ativista e respeitada antropóloga militante do movimento em favor do combate ao racismo nos Estados Unidos. Barrada no hotel por ser “de cor”, a atriz, que era convidada oficial da cidade, não perdeu a oportunidade para denunciar o caso. Chamando a impressa para colocar à público o vexame, denunciou o incômodo, taxado como “ofensivo à dignidade humana”. O Correio Paulistano deu destaque à notícia que, por sua vez, provocou alguém como Gilberto Freyre então deputado - o mesmo que caracterizou a “democracia racial” - a considerar o caso como ultrajante ao ponto de “amesquinhar-nos em sub-nação”.

Como rastilho de pólvora, o assunto mexeu com os brios legislativos ao ponto do também deputado Afonso Arinos apresentar projeto agravando o conceito de preconceito racial, elevando-o à categoria de contravenção penal, sujeito a pagamento de multa e/ou cumprir pena de prisão até um ano. O ato foi aprovado com o nome de Lei Afonso Arinos que, mesmo vigorando, jamais atingiu efeitos minimamente desejáveis. Daí em diante, leis se complementaram até o presente quando, finalmente, vimos aprovada no Senado Federal, dia 18 de novembro último, a proposta que equipara “injuria racial” (ofensa dirigida a uma pessoa em particular) à condição de “crime racial” (ataque que atinge a coletividade), com pena de dois a cinco anos de prisão e pagamento de multa.

Andamos? Esta é a pergunta que temos que fazer. Se a consideração remeter ao acatamento legal, até admitimos concordar, mas se forem consideradas as mudanças nos comportamentos culturais... Ainda o caminho é longo, mas sigamos imaginando que dias melhores virão e que os próprios negros são arautos da diminuição das diferenças insuportáveis.

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