quarta-feira, 23 de outubro de 2019

CONTANDO A VIDA 286


UM BELO DIA TAUBATEANO EM PARIS. 


José Carlos Sebe Bom Meihy 

Para Luis Issa, pelos resgates 

Certa feita, corria o mês de julho de 2016, aconteceu uma remarcação de passagens motivada por problemas da companhia aérea e, no meio da surpresa, me sobrou um dia livre em Paris. O que fazer restou ser um doce dilema. Passada a temporada de trabalho com intervalos suficientes para museus, restaurantes, teatros, aquele presente do acaso merecia cuidado especialíssimo: mas como bem aproveitar? Por lógico, não cabia pensar em compras ou cinema (imagine), nem passeio pelas cercanias sempre tão convidativas como a Giverny de Monet, o Castelo de Cantilly, a adorável Catedral deChartres, ou o Palácio de Fontainebleau ou Versailles. 

Absolutamente perdido entre mil alternativas lembrei-me de tantos que decantaram a Cidade Luz e declinei lembranças literárias que me viajaram por Victor Hugo, sugerindo a vivacidade perigosa de “Os miseráveis”; pensei em percorrer as ruas descritas por Nerval indicando o terror dos becos; supus o Marquês de Sade preso na Bastilha. E, um depois do outro, fui me lembrado de Apollinaire, Rimbaud, Zola. Foi assim que, de repente, me senti como no filme “Meia noite em Paris” e, via Woody Allen, me convidei às aventuras experimentadas por Madame de Stäel junto com toda a Geração Perdida: Hemingway, Fitzgerald, Ezra Pound, James Joyce. E então me era dado confirmar se “Paris é uma festa” por mais um dia inesperado. Tomei tento para me deixar ao leu, sem destino e descuidado da eloquência do relógio. Foi como – outra vez pela literatura – melhor pude entender Baudelaire no significado do verbo “flanar”. E não há como deixar de ligar Baudelaire a Walter Benjamin, ambos aquilatando a alegria de se soltar livre por Paris. Pronto, estava decidido iria ser flaneur e nos limites conjugar o tal verbo que significa, antes de mais nada, absorver a atmosfera da cidade. 

Decidido que andaria, restava caminhar, caminhar e andar ainda mais... E eis que, de repente, Taubaté me veio à cabeça. Estava na Place d’ètoile... Ah, que sensação! Com a certeza da força do instinto, não mais que num zap, lá estava eu naquele entroncamento fervilhante, em frente ao Arco do Triunfo. Senti-me, juro, como dentro da melhor estrela urbana. Outra vez sem pensar, flanava pela Avenue Foch com uma sensação tão estimulante como se isso me fosse familiar. Caminhei bastante, passei pelas lojas de marcas famosas, tomei sorvete na inigualável Bertillon (badalada como a melhor sorveteria da cidade), e por fim resolvi sentar-me à sombra e tentar alguma relação entre a Place d’étolie dos franceses com a nossa Praça da Estrela, de Taubaté. 

Difícil aproximação. Buscando conexões restou o traçado, posto que a atmosfera era, fatalmente, outra. A ideia de progresso incutida nas duas praças, contudo, se mostrou denominador comum, mas qual seria a relação fatal que projetava uma na outra? A história diria, e fui a ela. A Place d’étoile parisiense é de 1777 e despontou como resposta da vibração local que pretendida superar o passado modesto e problemático, antigo reduto boêmio e de prostituição; o nosso surgiu do nada, pois foi obra de um visionário, Felix Guisard, que tendo morado em Paris resolveu reeditar um pedaço daquele desenho urbano, em 1894. Que sonho lindo! Ainda que não dê para comparar escalas, é notório que a modernização da nossa então modesta urbe estava na cabeça brilhante de um dos pioneiros da indústria têxtil brasileira. É exatamente esta a chave que atua a beleza do fato urbanístico. Cabe contextualizar a intervenção que ganha condição estelar real na medida em que a ousadia se impunha como aventura. Taubaté, como cidade, era até o começo do século XIX um local sem expressão. Por mais que os românticos tentem ver dinâmica, éramos apenas um centro burocrático, pequeno, inscrito no roteiro das cidades do café. Interessava aos fazendeiros a ligação direta entre suas unidades produtivas e os portos, condição que fazia das tropas e dos tropeiros, agentes de trânsito. Monteiro Lobato, muito mais tarde inventou o termo “cidades mortas”, mas, na realidade, nossos rincões, até recentemente, nunca tiveram pujança ou função. A constatação da proposta vibrante de Felix Guisard e de seus sócios, ao implantar a fábrica de tecidos, correspondeu à superação da linhagem colonial. 

Como me foi revelador pensar nisso tudo estando em Paris. Entendi melhor o velho Guisard, pois supor Paris em Taubaté era muito mais do que imitar, equivalia a indicação de uma radical virada de página na nossa história. Despir a roupagem de um passado escravocrata, restrito às tradições agrícolas decadentes, e no lugar propor nova aventura econômica era um desafio marcante. E não era apenas o traçado da Praça que impunha isto. Não, não mesmo. Junto vieram as vilas operárias, o trabalho feminino, a parafernália das máquinas, organizações de trabalhadores. Enfim a modernização. Sabe que mais pensei naquele então? Lembrei-me – por irônico que pareça – da ausência de memória de nossos concidadãos. Pois é, passamos pela nossa Praça da Estrela e nem notamos o tempo das utopias que nos permitiram ser o que somos. Sou grato a José Eugênio Guisar Ferraz por ter escrito um livro sobre sua família em Taubaté. O “Sol da manhã” ilumina uma página da história que merece ser visitada. Tomara que nossa estrela brilhe e que não percamos o direito de ver uma Praça na outra, e nas duas a beleza de dar matéria aos sonhos.

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