sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

PAPIRO VIRTUAL 43

Finalizei minha leitura das obras de Ésquilo, com a Oresteia. Seu valor é inestimável: a única trilogia de tragédias gregas sobrevivente. Nos festivais em louvor ao deus Dioniso, cada dramaturgo competia com uma trilogia e uma peça satírica. Essa última lastimavelmente se perdeu no caso em questão.
Ésquilo tratou dos desastres envolvendo a Casa dos Átridas após a Guerra de Tróia. Recentemente, escrevi sobre temas correlatos, ao viver a fase de filmes baseados em tragédias. Quando necessário, colocarei links nesta resenha pra essas postagens.
Contrariamente à maioria das peças sobreviventes do autor, a Oresteia não tem valor mais literário do que cênico. O tragediógrafo demonstra maestria, intercalando falas ricas com ação dramática, além do uso de adereços e simbologias.
A primeira peça é Agamenon, chefe do exército grego contra Troia, que teve que sacrificar sua filha Ifigênia a fim de que os deuses soprassem o vento pra mover a armada de mil navios argivos.

A peça trata de sua volta pra casa. Uma convenção trágica exigia que a ação no palco não excedesse 24 horas. Por isso, temos a primeira cena onde um guarda vê a fogueira que avisava a vitória dos gregos e poucas horas mais tarde Agamenon já de volta.
Traz consigo a cativa Cassandra, princesa troiana, filha de Hécuba. Clitemnestra, a esposa do comandante, que jamais perdoara o marido pela imolação de Ifigênia, ira-se ainda mais quando vê a concubina de Agamenon. Se já nutria o plano de assassinar o marido, a presença da profetisa em quem ninguém acreditava a faz ter mais um motivo pra vingança.
A essa altura, Clitemnestra já dividia a cama com Egisto e em se tratando duma cultura onde a mulher praticamente não era considerada gente, a rainha tem toda a antipatia do coro. Um dos estratagemas pra “desqualificar” a rainha é reclamar que suas atitudes e procedimentos são “masculinos”.
Agamenon traz algumas cenas famosas, como quando o prócer desce de sua carruagem e a esposa lhe oferece um tapete carmim para caminhar. Representação cênica do banho de sangue que seria seu retorno à amaldiçoada casa átrida.
Devido à sobrecarga de fim de ano, demorou pra eu ler As Coéforas, segunda peça da única trilogia grega íntegra.
Alguns anos se passaram desde o assassinato de Agamenon. Com medo de vingança, Clitemnestra enviara o filho Orestes, ainda bebê, pra ser criado longe de casa. À filha Electra reserva uma vida de semiescravidão.


Um dia, Electra e o coro de escravas vão fazer oferendas no túmulo do finado rei. Não sabem que antes delas, o jovem Orestes regressara do exílio com a missão de vingar a morte do pai, ordens do deus Apolo. O príncipe deixara um cacho de seus cabelos sob a sepultura. Comparando o formato das pegadas e a cor dos cabelos, Electra conclui que o irmão está cerca. Orestes sai do esconderijo e revela-se à irmã, numa linda cena.
Esse reconhecimento de personagens desaparecidas ou misteriosas é elemento comum nas tragédias e recebe o nome de anagnorese. A das Coéforas é hilariante – mesmo grandes autores deslizam – e o bilioso Eurípedes não desperdiçou munição: em sua Electra, tira sarro da desajeitada anagnorese esquiliana. Bitch slap na Grécia Clássica, gente! Tenso, mas, Ésquilo mereceu. Usar um cacho de cabelo de alguém que não se vê há anos e o formato duma pegada, tão diferentes os pés de homem e mulher? Me deixa, Ésquilo!
Como o olho por olho impera no mundo trágico, sabemos que Clitemnestra morrerá sem escapatória.  Que situação a do amaldiçoado Orestes: Loxias (Apolo) incumbiu-o de matar a própria mãe. Nas Coéforas, o herói trágico titubeia por alguns segundos, mas cumpre o fatídico destino.
Como os átridas são danados, o jovem sairá no prejuízo de qualquer jeito. Se não eliminasse a mãe, incorreria na ira de Apolo. Ao apunhalá-la, enfurece as Erínias, deusas da vingança, especialmente dos crimes de sangue. 
Não adianta esperar “bondade” das divindades gregas, personificações de sentimentos, fenômenos físicos e naturais etc. Também não se deve acusa-las de “más”.Poseidon é o mar, pronto. E o mar traga inocentes e culpados; homens, mulheres e crianças indistintamente.

Esse beco sem saída de Orestes ressalta seu valor como digno herói trágico, que tem uma missão e a cumpre, nesse caso, titubeando uns segundinhos.  Ótima lição pros que dizem que o herói trágico NUNCA tem dúvida.
As Coéforas é poderosa verbalmente. Imagens perturbadoras de víboras mamando na teta materna, misturando sangue e leite. Belíssimos diálogos ente os irmãos, mãe e filho e majestosas falas do coro. Tirando a anagnorese desajeitada, era Ésquilo em seu esplendor.
E, claro, prum diretor criativo mesmo os cachos e pegadas de Orestes renderão um espetáculo cenicamente belo até nos dias de hoje. E texto de teatro é pra ser encenado. Não adianta ser uma explosão de artifícios linguísticos se não tem fôlego pra palco. 
A trilogia encerra-se estupendamente com As Eumênides, reviravolta de 340º na religião e forma de justiça. A cultura pré-Clássica grega do talionismo – que garantiria banhos de sangue infinitos – é substituída pela da justiça do Areópago. Ao tematizar o julgamento de Orestes por um tribunal presidido pela deusa da sabedoria, Atena, Ésquilo está falando sobre a gênese da grandeza ateniense – no auge à época dos grandes tragediógrafos, mas, em perigo também – e sobre uma mudança de mentalidade que é uma das bases da civilização ocidental.   
Ésquilo batizou o epílogo de sua trilogia com o nome das eumênides, portanto, há que se prestar atenção a essas divindades e em seu significado. Elas nada mais são do que o novo nome das Erinias, após o julgamento de Orestes. Vejamos.
As Erinias, deusas da era pré-olímpica, representavam a cultura da vingança violenta. Quando Palas Atena, representante da nova ordem olímpica, instaura o tribunal que inocenta Orestes, as divindades vingadoras ressentem-se e ameaçam amaldiçoar Atenas. Afinal, perderam o poder com a invenção do tribunal humano. Palas, então, oferece-lhes o posto de protetoras da cidade, tornando-as deusas do bem e não mais antipáticas vingadoras. Daí a mudança de nome de Erinias para Eumênides. Os deuses antigos não podem ser mortos, porque imortais, mas, podem ser abafados ou alocados pra novas funções. Quer dizer, Ésquilo está realmente falando sobre a passagem duma Grécia tribal pra versão então moderna do século V AC.

Mas, como sou chato, não esqueço de que quem pediu os sacrifícios todos da casa dos átridas foram os deuses da tal nova ordem...
Cenicamente, como as 2 primeiras peças, as Eumênides oferece muito pra diretores criativos. Imagine a aparição do espectro de Clitemnestra pedindo vingança. No radical patriarcalismo grego, uma mulher pró-ativa como ela tinha que terminar mal. Não que esteja defendendo uma assassina, mas nos termos esquilianos, a morte de Agamenon merecia mais punição do que o matricídio orestiano, porque, segundo Apolo, mãe não era parente. O pai semeava a mulher, mera hospedeira do filho.    
A grandeza temático-cênica da Oresteia frustra. Dá vontade de construir uma máquina do tempo, voltar pra Atenas de Péricles e salvar outras trilogias.

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