segunda-feira, 25 de junho de 2012

A HISTÓRIA DE LILI


Vocês têm acompanhado a trajetória do livro Será o Benedito? E Outras Crônicas, de Lili Cavalcanti, escritora com albinismo.
A escritora compartilhou conosco sua história de vida e a de sua família. O resultado é um texto que ressalta a importância da educação e da leitura, além da garra dos irmãos albinos em vencer o preconceito e as dificuldades impostas pelo albinismo. 

Caros amigos

         Aceitei o convite do blog e estou enviando este relato, por acreditar que posso contribuir para mudança de postura da sociedade em relação às pessoas com albinismo e fortalecer a luta contra o preconceito e a intolerância. Podemos ser tudo o que queremos ser, basta que sejamos respeitados em nossa diferença.
Quem sou eu?  
         Sou Angely Costa Cruz, professora, bibliotecária e agora escritora. Recentemente em 13/04 lancei o livro “Será o Benedito? E outras crônicas” (Baraúna, 219p. R$ 29,90 – www.editorabarauna.com.br), na cidade de Timon – MA - Como autora, adotei o nome LILI CAVALCANTI e gentilmente este blog noticiou, pois como disse ao enviar a mensagem, considero da maior importância que pessoas com albinismo (como eu), em todos os recantos do mundo saibam o quanto somos capazes e o quanto não devemos dar ouvidos às palavras negativas. Minha história, assim como a de muitos outros albinos é uma corrida de obstáculos, onde a cada dia temos que superar mais um e seguir em frente.
A família
        Inicialmente, éramos seis irmãos, Airton, o único homem, conhecido como Alemão (exatamente pela cor da pele), além de Angelane, Ângela, Angely, Angelina e Anna Gláucia. Infelizmente, nosso amado irmão faleceu em 1991, ainda forte, jovem e inundou nosso coração de saudade. Ângela e Anna Gláucia são as irmãs de pele morena; eu (Angely, ou Lili como me chamam em família), Angelina e Angelane são as irmãs com albinismo, ou seja, a família não é somente de albinos. Meus pais, Antonia e Adelino têm tonalidades diferentes para cor da pele, não são albinos. Soube que meu avô paterno, este sim, era albino.
        Desse modo, essa constituição familiar sempre causou estranheza em nosso meio social. Quando passamos a morar na cidade de Timon, vizinhos e demais pessoas do ambiente social até desconfiavam que aqueles quatro irmãos fossem mesmo filhos daquele casal tão diferente. Mas, como para minha mãe não tem tempo ruim e sempre foi muito forte, nos aconselhou desde sempre a não dar importância aos comentários da rua. E assim, ainda que com a incompreensão dos demais, iniciamos nossa caminhada.
A escola
         O primeiro passo e o mais difícil era ir à escola, pois lá teríamos que enfrentar de perto os olhares surpresos e espantados de crianças e adultos, numa época em que não se conhecia o termo educação inclusiva. Fiz juntamente com Ângela e Angelina, o Jardim de Infância do Serviço Social do Comércio (SESC), pois nosso pai era comerciário na época e esses trabalhadores tinham direito a matricular seus filhos na escola da instituição.
Lá aprendemos realmente tudo de bom que uma escola poderia oferecer, mas o fato de ter albinismo e baixa visão (já usávamos óculos aos três anos) provocava reações de estranheza em todos. Éramos alvos fáceis de brincadeiras, gozações ou apelidos pejorativos, por parte de crianças ou adultos, da mesma forma que muitos outros albinos. Foi aquilo que hoje se chama de bullying. O constrangimento era tanto, que me tornei uma pessoa introspectiva, de poucas (ou nenhuma) palavras. Na escola só falava quando era chamada e todos se admiravam, porque minha mãe relatava que em casa meu comportamento era outro. Claro, em família me sentia protegida e falava pelos cotovelos.
E desse modo, cresci, eu mais retraída, Angelina mais comunicativa, pois sabia se defender melhor de reações preconceituosas. Assim seguimos, apesar de toda incompreensão a nossa volta. Por causa do albinismo e da baixa visão, tivemos durante toda a vida escolar grandes dificuldades com a aprendizagem; não contávamos com nenhuma ajuda, somente com a insensibilidade coletiva, se não perdíamos o ano, a recuperação era certa. Ir à escola se tornou uma tormenta, um sofrimento, o desconforto era imenso e por algum tempo passei a não mais falar sobre minhas dificuldades aos professores e tentei parecer igual aos outros, prejudicando a mim mesma; na minha cabeça, assim evitaria reações adversas a minha pessoa. É aquela nuvem de baixa estima, que em muitos momentos insiste em nos acompanhar, enfim. O sistema escolar era rígido e não havia espaço para compreensão das diferenças. Só mais tarde entendi que não era eu que teria que me adaptar ao mundo. É o mundo que precisa aceitar e conviver com as diferenças.
Para além da escola
         O tempo foi passando, e se a escola não era acolhedora procurei descobrir sozinha mais informação sobre o que ouvia nas aulas, queria me aprofundar em assuntos de que gostava; livros e gibis passaram a ser minha companhia constante, encontrei na leitura o refúgio e a resposta para uma porção de dúvidas, em meio à resistente intolerância alheia. Quando chegávamos da aula, aprendemos a ajudar nossa mãe em casa com as tarefas domésticas, assim como nossa avó materna Gláucia, que morava ao lado. Depois era hora do dever de casa, que no início mamãe ensinava, mas com o tempo aprendemos a fazer sozinhos. À tarde, ao recolher os cadernos do colégio, corria para ler outros livros e gibis, que sempre circulavam na casa de minha avó. Assim, com dificuldades ou limitações eu e meus irmãos encerramos o hoje chamado Ensino Fundamental. Airton teve maiores dificuldades e só terminou mais tarde. E quase ao final da década de oitenta, fizemos o Magistério, curso equivalente ao Ensino Médio na época, no tradicional Instituto de Educação Antonino Freire.
        Esse fato também provocou o comentário geral da vizinhança, pois não entendiam como tal façanha seria possível. Afinal, o comum nesta região era viver sob o guarda-chuva dos políticos, mas seguimos em frente sem dar ouvidos a ninguém e nos formamos professoras. Duas irmãs logo entraram para o serviço público e paralelo a isso, ficamos a tentar por diversas vezes passar na peneira do temido vestibular; nessa época também passei a dar aulas de reforço em casa. A universidade só aconteceu em 1992, mas não conclui o curso, pois além da limitação visual, o trabalho, o transporte e os problemas com o sol me desmotivaram bastante. E o curso superior só veio mesmo em 2003, quando entrei para Biblioteconomia, me formando em 2007.
O Colégio “Gláucia Costa”
         Mas, o grande divisor de águas em nossa vida, foi realmente a fundação do colégio Gláucia Costa, em 1990, por nossa família na cidade de Timon – MA e no mesmo local onde sempre vivemos e sofremos com a intolerância alheia. Costumava-se dizer, aliás, que ali não haveria futuro para ninguém, mas trabalhamos com dedicação e provamos o contrário. Hoje, nossa Escola tem 22 anos e se tornou uma referência de educação na cidade.
        A escola nasceu a partir de um sonho projetado por nossa mãe: as quatro filhas professoras teriam sua própria escola. O que para alguns era impossível. Mas, o tempo provou sua sabedoria e mesmo sob algum olhar preconceituoso, o sonho virou realidade. Na prática, a escola surgiu de nossa preocupação com a baixa qualidade de ensino que se verificava na cidade e da nossa aposta em preencher essa lacuna na sociedade timonense. E para transformar esta certeza em realidade, caímos no trabalho duro, braçal e intelectual para por de pé toda a estrutura física e de fundamentação pedagógica da escola. Foram anos de esforço intenso.
        O nome da Escola é uma homenagem a nossa avó materna, Gláucia, que por muito tempo morou no mesmo local. Com a fundação do colégio, e sua progressiva ascensão diante dos bons resultados educacionais, finalmente viramos o jogo e todas aquelas pessoas que um dia nos olharam digamos, “atravessado”, passaram a nos admirar, respeitar, confiar no nosso trabalho e melhor, se tornaram parceiros da comunidade escolar, de modo que a Escola mudou não somente o olhar sobre a educação, mas principalmente a postura da sociedade local em relação à nossa diferença.
        O colégio “Gláucia Costa” é, portanto, uma página feliz em nossa história e continua a prosperar junto a comunidade; colhendo bons e surpreendentes resultados que mudaram a realidade educacional da cidade. Além disso, modificamos o mercado de trabalho local, oferecendo anualmente diversas vagas para professores e demais trabalhadores do setor educacional, ou seja, contribuímos fortemente para o progresso e desenvolvimento da região. E o melhor de tudo, é uma escola que põe em prática o respeito às diferenças. Para conhecer um pouco mais da Escola e de nossas ideias, acesse o site www.colegioglauciacosta.com.br
Vivendo e aprendendo a jogar
         Assim, nossa adolescência e fase adulta sempre foram focadas no trabalho. Airton, nosso irmão colaborou imensamente com a realização deste sonho, mas nos deixou cedo. O “Alemão”, como era conhecido teve uma vida ativa, com enorme poder de comunicação e dedicação aos projetos que abraçou; seu exemplo de trabalho e preocupação com a cidade nos orgulha e é um farol que ilumina nossa vida.
        Angelane (com albinismo), casou , teve três filhos e conquistou a pós-graduação (os filhos não tem albinismo). Ângela, uma das irmãs morenas é pós-graduada e diretora da Escola que fundamos, também casou e tem dois filhos. Anna Gláucia, a outra irmã morena é Enfermeira, com pós-graduação na área, tem uma filha de seis anos e mora conosco, na casa de nossos pais. Angelina (com albinismo) é hoje Mestre na área de Informática, pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).
        Eu (Angely) me tornei Bibliotecária por vocação e paixão pelos livros, tenho uma pós-graduação e há pouco me lancei como autora, pela Editora Baraúna, com o livro “Será o Benedito? E outras crônicas”. Escrevo para jornal desde 2002 e todos que passaram a ler as crônicas, começaram a me cobrar a publicação de um livro. Estou felicíssima com o resultado, pois a edição do livro é de excelente qualidade e vem obtendo ótima repercussão entre os leitores.
Desse modo, a leitura e a escrita sempre foram marcantes em minha vida e nem mesmo a baixa visão me impediu de crescer intelectualmente. É verdade que leio mais devagar, tenho problemas com claridade e tenho que estar sempre no oftalmologista, mas o prazer de ler é maior que isso. Outro cuidado permanente é com o sol, principalmente aqui no meio norte do Brasil, aonde a temperatura chega aos 40 graus. Então, é protetor solar sempre, roupas de mangas compridas, casacos, sombrinha, chapéu e óculos escuros. Mas, como todo cuidado é pouco o câncer de pele já me atingiu por várias vezes. Por isso, para nós, pessoas com albinismo nada como uma boa noite de luar.
        Embora hoje, a sociedade esteja mais bem preparada para conviver com as diferenças e o termo educação inclusiva, ter virado verbete da moda, ainda vemos demonstrações claras de intolerância em todos os lugares. É impressionante como muitos não se educam para respeitar as diferenças, mesmo na universidade, local onde a postura deveria ser outra. Mas, enfim, nem tudo é como se quer e todos os dias temos que vencer uma batalha. O certo é que as pessoas com albinismo (como eu e minhas irmãs) precisam mostrar seu valor cada vez mais, sem dar ouvidos a comentários maldosos, ou permitir que a baixa estima nos afete. O importante é saber que as conquistas virão, apesar de tudo.
        De minha parte, agradeço todos os dias a Deus e a força de minha família. Choro de angústia sempre que leio neste blog sobre a tragédia que afeta as pessoas com albinismo na África. Em meu livro inclusive, há uma crônica sobre isso. Encerro aqui informando também que o lançamento que fiz no Salão do Livro do Piauí (SALIPI), em Teresina, entre os dias 13 e 17 de junho passado foi um sucesso, me surpreendeu mesmo.
Assim, precisamos superar os obstáculos a cada dia e seguir adiante, com fé, esperança e atitude positiva, porque assim estaremos prontos a enfrentar os desafios a nossa volta. Felicidades a todos.
Angely Costa / Lili Cavalcanti

2 comentários:

  1. Parabéns Lili! Ler a tua história faz com que eu me sinta mais forte!

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  2. Emocionante! DESAFIOS, LUTAS E VITÓRIAS. Que pessoa maravilhosa você deve ser. PARABÉNS!!!Cheguei até aqui através da leitura do texto "La vem o Brasil descendo a cachoeira" de sua autoria.

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