quarta-feira, 2 de março de 2016

CONTANDO A VIDA 140

Nosso historiador-cronista alerta para o sistemático genocídio de uma de nossas etnias indígenas, os Kaiowás. Assunto sério e triste. 

NOSSA MAIOR TRAGÉDIA: índios, alienação e desamparo.
José Carlos Sebe Bom Meihy
As dramáticas palavras da vice-procuradora Geral da República, Déborah Duprat, colocam a nu uma das mais agressivas situações que atualmente nos dizem respeito: “a reserva de Dourados (dos índios Kaiowá) é talvez a maior tragédia conhecida da questão indígena em todo o mundo”. Triste demais isso. E o problema não é novo. Em 1991 estive com alguns alunos da USP em Dourados (MS) e então procuramos entender para divulgar um dos dramas mais vergonhosos de nossa realidade contemporânea: a morte de jovens Kaiowá, fenômeno que ocorre majoritariamente entre jovens de 10 a 24 anos. Sob o título “Canto de morte Kaiowá: história oral de vida” (Editora Loyola, SP), o livro resultado dessa investida buscava traduzir outra justificativa que não fosse a rasteira interpretação daquelas mortes provocadas como vontade de extinção ou incapacidade de sobreviver no chamado “mundo civilizado”. Havia muito mais nessas sentenças autoimputadas. E quanto desconhecimento de nossa parte! Sequer conseguíamos entender os sinais dados por aqueles que se imolavam e, no máximo, divulgávamos números e notícias espantosas, sem capacidade de articular soluções. Logo, pareceu-nos alarmante o fato de sequer sermos aptos a estabelecer hipóteses capazes de revelar o sentido do drama daquele grupo. Restava então, pelo menos, contar algumas das histórias e foi isso, aliás, o máximo que conseguimos fazer. Desde aquele então, a imprensa em geral se acostumou àquela trama maldita e aos poucos foi se silenciando até que recentemente um fato novo irrompeu o cômodo vazio de ecos.
Segundo dados recentes, desde o ano de 1986, mais de 860 mortes ocorreram e agora, como um dos mais expressivos apelos jamais visto em quadrante algum, um grupo de 170 índios - 50 homens, 50 mulheres e 70 crianças, que vivem à beira do rio no município de Iguatemi (MS) ameaçam se matar. A sentença é “morte coletiva”. E nem faltam avisos dramáticos vazados em cifras alarmantes, de vítimas que tentaram, mas não conseguiram chegar a óbito – fala-se em cerca de mais de 500. Agora, em carta de alerta enviada às autoridades, disposta ao público em geral e, divulgada principalmente pelas redes sociais, os Kaiowá advertem, no limite da capacidade de expressão em língua portuguesa: “pedimos ao Governo e à Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas decretar nossa morte coletiva e enterrar nós todos aqui. Pedimos para decretar nossa extinção/dizimação total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar nossos corpos. Este é o nosso pedido aos juízes federais”. A medida se deve pela iminência de policiais e pistoleiros que trabalham para latifundiários da região que querem aquelas terras para plantio.
A carta inicialmente dirigida a Justiça Federal continua com dizeres espantosos derivados de ordem de despejo expedida pela Justiça Federal do Estado do Mato Grosso do Sul: “recebemos esta informação de que nós comunidades, logo seremos atacada, violentada e expulsa da margem do rio pela própria Justiça Federal de Navirai-MS. Assim, fica evidente para nós, que a própria ação da Justiça Federal gera e aumenta as violências contra as nossas vidas, ignorando os nossos direitos de sobreviver na margem de um rio e próximo de nosso território tradicional Pyelito Kue/Mbarakay”. Notícias recentes dizem da reversão da pena injustamente imputada aos Kaiowá, mas isso é muito pouco. Faz-se necessário um elenco de medidas que trabalhe com a aproximação digna de índios, em particular dos que ficam nas proximidades de cidades e em meio a áreas de plantação extensas. O endereço deste tipo de medida visa inscrevê-los nos processos de cidadania plena, com direitos a atenção de saúde, escola, seguridade social. Não bastam leis demarcatórias, ainda que sejam importantes. Muito mais do que qualquer outra medida é preciso conhecer a história e cultura dessa gente e intensificar processos de mediação e trabalho conjunto. Por certo medidas legais hão de ajudar, proteger até, mas serão insuficientes se não tivermos capacidade de sensibilizar grupos de convívio imediato. Um bom começo seria o trabalho com os próprios índios que têm reivindicações claras; também seria frutífero atuar junto aos formadores de opinião pública; outro, o recurso difusor pelas redes sociais. É preciso mostrar ao mundo que os índios são seres aptos e que mais do que nos afetar com ameaças, são seres capazes de instituir mecanismos de sobrevivência apropriados para o convívio. Ao mesmo tempo, como brasileiros, precisamos nos livrar de situações como esta. Afinal, o Brasil que alça à condição de sexta economia do mundo tem que se explicar.

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