quarta-feira, 22 de setembro de 2021

CONTANDO A VIDA 358

 BURCA

José Carlos Sebe Bom Meihy

Sem dúvida, a burca é um dos itens mais perturbadores da experiência contemporânea. Peça simbólica, a roupa usada por seguidoras da leitura radical do Alcorão obedece ao purdah, mandamento que prescreve a cobertura do corpo feminino, por entender que o rosto constitui parte íntima da mulher. Como polo de tensão, essa veste capitaliza conflitos que se extremam entre o oriente e o ocidente. A par das propostas oferecidas pela indústria da moda no circuito ocidental, criou-se discussão mais profunda, relativa ao uso da burca e suas relações sociopolíticas. O mesmo se diz sobre julgamentos que anulam explicações de usuários que a defendem. Antes, cabe dizer que a burca é usada principalmente no Afeganistão que, aliás, nem sempre foi o que se mostra hoje.

Convém lembrar que até a segunda parte do século passado, Cabul foi uma cidade atraente, compondo inclusive o roteiro do turismo exótico. Nos anos da contracultura ocidental, os afegãos conviveram com hippies psicodélicos, que buscavam as cidades místicas da Índia ou do Nepal. Cabul era parada obrigatória e nesse circuito, aliás, vale citar o famoso Magic Bus, que saía da Amsterdã lotada de entusiastas da cultura “paz e amor”, com muito rock e maconha. Esse período correspondia à culminância da abertura para o ocidente, proposta por Mohannax Zahir, Xá (1914 – 2007) que estudou na França e que, ao assumir o comando do país em 1933, foi o primeiro a se opor publicamente aos haréns e à poligamia masculina.

Naquele então, mulheres podiam andar livremente sem companhia masculina, viajar, ir à praia, ter negócios e estudar. As lojas de Paris e Nova York difundiam a marca afegã “Biba”, famosa pelas minissaias, botas e muitos bordados estravagantes, com linhas coloridas e chapéus espalhafatosos.

Tudo isso viu fim em 1973, graças a disputas de fundamentalistas islâmicos que, em plena Guerra Fria, se investiram de poderes para refutar o que não fosse islâmico, inclusive dominação política. Convém lembrar que o Afeganistão tem posição estratégica entre a China, Paquistão, Índia e Irã sendo, portanto, geopoliticamente importante. Entre sanhas tribais, os talibãs distinguiram-se desde 1996, fundando o Estado Islâmico do Afeganistão, impondo regras que incluíam códigos de roupas que exigiam absoluto recato e austeridade.

Tudo prescrito pela sharia, lei islâmica que proibia influências ocidentais: música, cinema, televisão, refrigerantes, perfumes, sabonetes, e, claro, roupas variadas. É sabido que a burca é anterior, existindo desde o século XIX, mas seus usos sofreram variações no mundo árabe onde se exercita o uso do hijab ou seja, a cobertura que tem diferentes concepções.

A burca, que se tornou tradução do radicalismo talibã, sempre na cor azulada, é peça única com uma rede que permite a respiração e o olhar. Há casos ainda mais extremos, onde recomenda-se o uso de luvas para que nada seja exposto. Uma variação menos rígida é o nikab, popular veste preta, que permite exposição dos olhos da usuária. Há variações de usos bem mais leves como o chador, abaya, al-amira e até as mais comuns como o hijab e a shayka, lenços que deixam o rosto livre.

O interessante dessa história é a interpretação das mulheres islâmicas, que, ao revés da perplexidade ocidental, apresentam versões escandalizadas da nossa moda. Percebendo-nos como escravizadores, os olhares islâmicos radicais notam formas de submissão das mulheres ocidentais exatamente pela exposição do corpo, facilitação sexual e pela competição vaidosa de roupas que se atualizam no ritmo consumista. O tema, contudo, ganha novas dimensões na medida em que muitos países da Europa têm proibido o uso da burca, por razões de segurança, pois atentados foram perpetrados em várias regiões por pessoas “escondidas” em burcas ou nikab. Além disso, alguns problemas de saúde também valem como argumentos condenatórios por impedir a produção de vitamina D, favorecer câncer de pele, e por questões de ventilação do corpo. Enfim, os problemas causados pela simbologia da burca são polarizados, mas, a questão complexa deve ser discutida e não vista na simplicidade do fanatismo e da condenação.

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