quarta-feira, 8 de novembro de 2017

CONTANDO A VIDA 211

A ESPANHA FRACIONADA: RETRATO DA EUROPA? ALERTA AO MUNDO?


José Carlos Sebe Bom Meihy
Escrevo de algum ponto entre Milão e Gênova. Na manhã brumosa, o trem corta o tempo em velocidade alta. Sinto-me na era moderna, mas ainda com sentimento de velhas viagens. O Mercado Comum Europeu, ou como alguns preferem a Comunidade Europeia, mudou as relações turísticas impondo novas regras, unificando moedas, regulando acessos, facilitando o transito geral, ao mesmo tempo que impõe controle maior aos não europeus. O encanto pela Europa, no entanto, permanece o mesmo, intocado, fascinante. Dias desses, pensava na ambiguidade de ser culturalmente “colonizado histórico” - primeiro no sentido de dependência política, depois cultural - e, ao mesmo tempo, sentir prazer em desfrutar de visitas às antigas metrópoles modeladoras do nosso meio jeito de ser ocidental. Isso, aliás, tem algo de paradoxal e ambíguo ao mesmo tempo. A par dos enigmas libertários, tenho que reconhecer que estar episodicamente vivendo os dilemas europeus me coloca como testemunha de conflitos sérios. E gozo do direito de ser observador livre do empenho decisório afeito ao pertencimento do corpo europeu.

A questão da pretensa independência da Catalunha domina os noticiários de televisão e povoa notícias e reportagens. Mesmo os programas humorísticos, os reality shows, ou espaços de entretenimento, estão afetados pelos debates sobre aquela “separação nacional”. E não é sem razão, pois a Europa toda é marcada pela construção de estados nacionais fermentados por unidades insatisfeitas com o padrão unitário típico do século XIX. É como se os fragmentos se despertassem de secular sono letárgico prometendo rebeldias latentes. Na Itália, por exemplo, pergunta-se o que tem de comum o norte com o sul? Uma breve passagem pela Lombardia, por exemplo, faz evocar comidas, danças, santos e artistas regionais. A Sicília apresenta outros encargos, o centro também, todos autênticos, mas distantes uns dos outros. E mesmo a língua e a religião comuns são pontuadas por tiques próprios que guardam certa memória não oculta por motes cultivados com picardias subjetivas. A conclamada Unidade Italiana é tão recente como a Alemã (1871) e em ambos os casos, seus regionalismos contêm latentes diferenças, muitas vezes expressas em detalhes sutis como times de futebol, concursos de miss ou até de certames escolares.

O chamado Leste Europeu se fragmentou recentemente, e desde a Queda do Muro de Berlim (1989) e o fim da União Soviética (1991), assiste-se às constantes mudanças de fronteiras. Sérvia, Croácia, Montenegro, República Checa, regiões derivadas do fim da Checoslováquia e da Iugoslávia, atormentam jovens estudantes que precisam aprender sobre novos estados, capitais, fronteiras e moedas. A Chechênia busca seu lugar ao lado da Ucrânia, Bielorússia, Geórgia, Armênia, Moldávia, e de outros polos. A ameaça de fragmentações nacionais assusta os unionistas e, em vista do resultado recente da retirada dos britânicos do bloco comunitário europeu, tudo se potencializa, ameaçando fraturas em cadeias. 

Barcelona, sem dúvida alguma, é dos locais mais efervescentes do mundo e se situa, com justificativas, entre os dez pontos mais visitados do mapa. Bem localizada na constelação de outras cidades catalãs com as quais respondem com cerca de 20% da economia espanhola, foi a sede recente das contendas entre o poder central espanhol e os catalães. Combinação bem sucedida de história preservada em monumentos explicadores do desenho urbano tão caro aos turistas, ostenta língua própria e uma personalidade orgulhosa e até arrogante. É bem verdade que todas as regiões da Espanha exibem característica legítimas e são soberbas nas reivindicações de autonomias. Mas a história espanhola é farta em tratativas unitárias, contra isolamentos frustrados.

Para quem estuda a Espanha, não faltam alegações para colocá-la como uma espécie antecipada de modelo para os futuros estados nacionais. Foi assim desde a liderança conseguida na abertura da modernidade no longínquo século XVI. O casamento de Fernando e Izabel marcou o início da Modernidade e a abertura para as grandes navegações. No mesmo tempo, a União Ibérica para a expulsão dos árabes em 1492 coroou um programa político triunfante, sob a hegemonia de Castela, que impôs a língua como nacional. Com o correr dos séculos, entre idas e voltas, a complexa aliança de 17 culturas autônomas ficou sob o governo de Castela, que animou pactos selados pelas figuras de reis que soldaram a hegemonia parlamentar que soube, principalmente depois de 1975, com o fim do franquismo, resistir às crises.

O final da ultima semana do mês de outubro fez ver novamente que apesar do intento separatista, mais uma vez a unidade prevaleceu. Esta vitória não é, contudo, apenas de Madri ou da Espanha, pois serve também de alerta a outros movimentos independentistas. Entre as muitas lições que se levantam a partir dos acontecimentos espanhóis, um se destaca: a necessidade urgente de se refazerem os pactos nacionais. Não vale mais apenas respeitar os acordos do passado como se eles não tivessem dinâmica própria. Em um tempo em que tanto se fala em convívio com as diferenças, importante é exercitar as mudanças. O respeito, mais do que nunca, exige conhecimento do “outro” e isso implica aliviar hegemonias ou vinganças partidárias. Dizendo de forma definitiva, é necessário reinventar a democracia. E isso não remete apenas a Europa, mas implica olhar a nós mesmos.     

Nenhum comentário:

Postar um comentário