quarta-feira, 19 de outubro de 2022

INFÂNCIA ALBINA EM ALAGOAS

A infância numa comunidade de negros albinos em Alagoas

Santana do Mundaú possui uma das maiores incidências de albinos no país


Quando Fabiana da Silva, 25, descobriu que estava grávida do segundo filho, dois desejos vieram à mente: que o parto não tivesse complicações e que ela desse à luz a um menino, para fazer companhia à irmã mais velha Adriele. O sonho se realizou e Maurício chegou com mais de 2,5 kg, a pele tão branca quanto a do pai, o agricultor Amauri, e os olhos da cor do mar. Cerca de dois anos depois, Jailson, o caçula, também se somou aos negros albinos da comunidade.

A família mora na comunidade Filus, em Santana do Mundaú, interior de Alagoas, certificada como quilombola desde 2005 e considerada o quilombo mais isolado geograficamente do Estado, a 9 km do trecho urbano. É de lá a maior incidência de albinos por habitantes do Brasil.

Dos 200 quilombolas, divididos em 42 famílias, 10 possuem a condição genética. Para se ter uma ideia, a incidência de albinismo na população mundial é de uma para cada 17 mil pessoas, segundo o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos.


Cuidado redobrado

A irmã mais velha de Maurício e Jailson, Adriele, 9, conta que tenta ajudar a mãe a cuidar deles e que não estranha ter dois irmãos com o tom de pele diferente do seu. Quando os meninos nasceram, ela lembra que ficou feliz, porque a partir daquele momento ia ter companhia para se divertir, como qualquer criança que espera ganhar um irmãozinho.

“Além deles, tenho meu pai e minha prima com a pele bem mais clara que a minha. A gente brinca, se diverte e ri juntos vendo tv e correndo lá fora pela noite, porque pelo dia minha mãe não deixa muito. Se eu sair, eles também vão querer”, diz a menina, sinalizando o cuidado com a pele clara nas horas de sol. Além de gostar de “ficar na área brincando de carrinho e de pega-pega com os meus irmãos e primos”, Maurício também gosta de fazer as tarefas da escola, diz.

A mãe ressalta que os cuidados com os dois pequenos são redobrados. Qualquer descuido, Maurício e Jailson ficam com a pele irritada e acabam adoecendo devido à incidência dos raios solares ou por falta de hidratação, que precisa ser mais frequente. “A gente precisa sempre estar de olho neles”, comenta.

“Meu marido é assim, então não era novidade que meus filhos chegassem ao mundo com essa cor também. Fora que eu vivo aqui desde pequena e conheço todos que também são como ele. Aqui é tudo igual, não tem diferença alguma”, destaca Fabiana, reforçando o significado da expressão ubuntu “eu sou porque nós somos”, que está por todo lugar em Filus.

A família Silva não é a única com esse sobrenome na certidão de nascimento por ali. Essa realidade no mínimo curiosa é resultado da frequência de casamentos consanguíneos entre primos e primas, também responsável pela consequência genética do albinismo.


Retrato de família

A poucos metros dali, os retratos pendurados na sala de estar também são o reflexo da diversidade de cores da família de Cleone Severino da Silva. Filha de remanescente quilombola, ela teve os cinco filhos em casa: Tamires, 18, José, 15, Thaíse, 12, Thauene, 10, e Yasmin, 7. Na época, nem havia energia elétrica na região. Sem a ajuda de ninguém, a filha do meio, Thaíse, a única com albinismo, chegou ao mundo de parto natural.

“Meus filhos, tive tudo aqui, alguns noite adentro, inclusive. A Thaíse era aquela luz toda branquinha. Quando eu a vi, parecia que estava iluminando a casa. Todo mundo aqui é igual. Eu tenho essa cor morena, e meus outros filhos e o meu neto [Davi, 2] também e está tudo certo. As ‘arengas’ entre os irmãos é a mesma”, brinca Cleone.


O futuro possível com mais educação

Entre as estradas de barro e em meio à beleza da serra, o sonho das crianças remanescentes de quilombolas da comunidade isolada passou a ficar menos distante há poucos anos, quando a Escola Ulisses Sousa de Mendonça finalmente foi instalada na área rural. Isso evitou que os pequenos ficassem expostos aos raios solares e diminuísse, por exemplo, a evasão escolar entre as crianças albinas. A presidente e fundadora do Instituto Irmãos Quilombolas, Cícera Vital, explica que essa conquista foi fruto da articulação feita pela organização para trazer mais qualidade de vida tanto às crianças da comunidade Filus quanto das comunidades vizinhas Jussarinha e Mariana.

“Antes, meninos e meninas tinham que andar mais de 30 minutos sob sol quente para poder chegar às unidades de ensino. Em época de chuva era ainda pior. Hoje, além da escola, eles têm também uma Unidade Básica de Saúde que consegue atender às necessidades de todos”, ressalta a liderança.

A professora albina Lucicleide dos Santos, 30, ensina alunos do fundamental I no colégio da comunidade e lembra que na época dela a situação era diferente. A educadora diz que a sala de aula representa um grande passo para que as crianças tenham uma referência de vida. “Para mim, é um privilégio trabalhar para ajudar a abrir as portas para outros”, comenta.

Esse trabalho é fundamental para apoiar sonhos como o de Tamires em ser policial militar. “Todos os dias acordo cedo para ir à escola e aprender tudo para realizar esse sonho”, projeta a garota. “Acho bonito o pessoal com farda, aqueles equipamentos, a bota, todo mundo andando na viatura. Sempre vejo quando vou à cidade”, conta.

Sobre os cuidados com as crianças que têm albinismo, Cleide tenta estar sempre alerta, principalmente na hora do intervalo entre as aulas, quando as crianças querem se divertir umas com as outras. “Eu perdi meu pai para o câncer de pele e perdi minha prima, com apenas 26 anos de idade, também para essa doença. Então, por aqui, é natural que a gente precise ter esse cuidado”, diz.


A Universidade Federal de Alagoas (Ufal) é uma das instituições que vem apoiando os negros albinos da comunidade Filus há mais de dez anos. Em parceria com o professor Jorge Riscado, falecido em 2021, o médico e especialista em cirurgia plástica Fernando Gomes foi responsável pelo mapeamento genético na comunidade, buscando evitar complicações de saúde, como o surgimento de feridas, que podem ocasionar o câncer de pele.

Também há uma atuação voltada a apoiar os agricultores locais, mas foi preciso muitas conversas e troca de experiências para a academia chegar à comunidade isolada e ganhar a confiança de todos. “Ao mesmo tempo que possui um ambiente muito interessante do ponto de vista da harmonia com a natureza, é cheia de vícios porque falta esclarecimento para que o agricultor saia da simplória subsistência e evolua para ser uma agricultor com capacidade de encontrar soluções para o plantio, para o problema da água, para o problema da escassez de recursos”, expõe o médico. No entanto, “nós tivemos a oportunidade de subir a serra naquele ambiente memorável e conviver com essa comunidade tão singular”, celebra Fernando.

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