quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

CONTANDO A VIDA 369

ALZHEIMER.

José Carlos Sebe Bom Meihy


Algumas vezes tentei escrever sobre minhas experiências com a chamada “doença de alzheimer (ainda que o corretor insistisse no “A” maiúsculo optei pelo minúsculo, jeito de vingar-me do mal). Em cada aposta encarei abismos. Desisti, não sem me sentir medroso, pequeno e desvalido. É difícil escrever chorando... Tudo é tão triste...

Dia destes ouvi alguém perguntado em um círculo de amigos: como gostaria de morrer? Com pequenas variações escutei: “dormindo”, “de ataque fulminante”, “de um raio fatal”, enfim, sempre de algo instantâneo e sem sofrimento prévio. Houve um mais romântico que pontificou “depois de um bom banho de mar”, e até quebrando a solenidade outro tagarelou “bêbado”. Meditando sobre essa fala, me questionei a respeito da ausência de fatores variados, de doenças crônicas, por exemplo. Ninguém mencionou cânceres, complicações hepáticas, cardiopatias, males do pulmão, dos rins, dos ossos... No agridoce daquela conversa, houve também um certo que soltou a piada conhecida, que referia a eventual escolha entre alzheimer e parkinson e então, não teve como disfarçar o abatimento que, afinal, creditava risos ao esquecimento da bebida ou seu derramamento. Macabro, né? Macabro principalmente para quem vive o drama em família.

Pois é, em meu caso, padeço desta síndrome em escala familiar. Não me faltam motivos: tenho cinco tios (de 16 irmãos) pelo lado materno que sofreram com isso, minha mãe inclusive; meu irmão e minha irmã se somaram ao triste conjunto. Dói tanto recordar que minha mãe, a mulher mais lutadora que supus encontrar, um dia olhou para mim, depois de repetidos abandonos de si, e perguntou se eu era seu pai, como ela se chamava, onde estavam suas bonecas. E como era comovente ver aquela guerreira se tornar menina, menininha, inocente criança que só queria brincar. De vez em quando, mamãe chorava e eu vendo não havia como me controlar.

Com meu irmão não foi diferente, o negociante contumaz, o homem de negócios que sabia fazer contas como ninguém, se tornou um garoto intimidado que batia o pé pedindo doces, querendo ir para a praia e que só se acalmava quando ouvia música sertaneja. Um dia – dos mais difíceis de minha vida – ele foi passar a manhã na loja da família e saiu sem que percebêssemos perdendo-se na multidão. Era um sábado e no Mercado Municipal, aturdido, alguém conhecido o encontrou e por caridade deu carona até sua casa sem, contudo, nos avisar. Quase enlouquecemos e fomos parar na polícia suspeitando sequestro. Demorou para conhecermos seu destino e tudo apenas ficou claro quando ao dar a notícia para minha cunhada entendemos o acontecimento.

Todos se foram por doenças diferentes, pois aprende-se que o alzheimer faz sofrer, mas não mata. E anos de convívio não nos domesticam. Pouco se aprende com a intimidade forçada pela doença. E não há melhor alento que o exercício da paciência. Os paliativos existentes, além de extremamente caros, são de efeitos frustrantes, ainda que retardem progressos. Difícil garantir o que é mais cruel na progressão dessa saga malévola. Se é válido dizer que algum pálido consolo existe, em meu caso familiar, é que os episódios de reações violentas podem ser contornados com calmantes e, de certa, forma são passageiros. Mas para os acompanhantes de longas jornadas... Para os responsáveis cabe o espinho insistente da aceitação na chave compulsória.

O desgaste inerente ao caso desequilibra progressivamente as relações. Tudo é muito sofrido. Dói tanto perceber nos olhos dos acometidos o abandono do mundo. E o melhor que podemos é falar a língua deles, andar os passos deles, respeitar seus modos alienados, fazer-se doente por empréstimo. Há, diga-se, um ritmo nas mudanças de comportamento dos adoecidos. A cognição normal vai se esvaindo levemente. Um esquecimento aqui, uma repetição acola; de lapsos brandos tornam-se moderados, passam a não ser incomuns e tornam-se falhas graves, insanas, consequentes, incontroladas.

Quando chega o momento familiar, aquele instante fatal das decisões conjuntas, é preciso muita força. Muita. Quisera aprender as lições da dor de despedidas chorosas. Quisera ser conformado. Quisera crer em milagres, mas não. Ainda não aprendi sobre conformações. Será que alguém sabe?

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