quarta-feira, 21 de outubro de 2020

CONTANDO A VIDA 317

 PAULO COELHO NA FOGUEIRA. 


José Carlos Sebe Bom Meihy 

É estranho. Estanho demais, bem sei, mas gosto de personagens públicos problemáticos, de gente complicada, pessoas capazes de agitar a pasmaceira da regularidade. Meu olhar menino se alinha quando miro seres que se pontuam fora da curva. Por certo, esforço-me para separar o joio do trigo, e assim desprezo produtos fabricados para render likes, como “mulheres frutas”, celebridades instantâneas, políticos populistas, afff... Procuro originalidades autênticas e nelas entender os trejeitos de pessoas que se abalizam de maneira singular e continuada, até mesmo sem perceber. Admiro caras que incomodam pela distinção exótica, desafiadores da opinião pública, ou por presença quase escandalosa. Eu disse quase!... E coleciono, com certa ansiedade, manifestações idiossincráticas, exageradas, disparates que repontam ao longo da vida social. Seja para o bem ou para o mal, sinto brilhar a frase de Sartre garantindo que “da vida só valem os excessos”. Excessos bons, desses exuberantes, e até permito excesso meu, incluindo esta intrigante observação algo voyeur. 

Em diferentes quadrantes, essas pessoas marcantes animam a vida, causam estranhezas e, sob olhar antropológico poderíamos dizer que em seus descomedimentos nos ajudam pensar os limites da normalidade convencional e os padrões médios. Na sociedade do espetáculo (Debord) aqueles que conseguem superar os 15 minutos de fama (Andy Warhol) provocam algo próximo de uma “indignação desafiadora”, e por isto motivam sensações incômodas. E seres bizarros não faltam no céu cultural brasileiro. Isso em todos os setores como no esporte (Neymar que o diga), na televisão (no momento Fabio Assunção empata com José Abreu), na literatura (o lugar de honra é de Nelson Rodrigues, mas tem o imortal Rubem Fonseca coladinho). Pois é, como não se trata propriamente de um concurso, resolvi dilatar a lista de possibilidades com um dos meus problemáticos favoritos: Paulo Coelho. E para começo de conversa destaco a frase que o tem distinguido nos jargões vulgares: “não li, não gostei”. Não é engraçado?! Engraçado ou lamentável, pois estamos falando de um dos autores mais vendidos em todo mundo, traduzido para 81 línguas, e presente em mais 150 países. Fenômeno, não só entre nós – ou melhor, apesar de antipatias nacionais gratuitas. Eu gosto muito, leio o que consigo sobre ele e mesmo o que dizem as más línguas. E, pasmem, aprecio o que escreve. Perdão, mas gosto mesmo... “Onze minutos” é um dos meus livros favoritos. 

Gosto tanto que o saúdo como cidadão do mundo, escritor que versa sobre feitiçaria com a mesma facilidade de abordagens sobre islamismo, xamanismo, ou outra religião, seita, credo. Há algo de metafísico, de teor transcendental pretenso, alguma coisa próxima de um “divino popularesco”, sinal que o caracteriza no ambiente pós-moderno. E como personagem, Paulo Coelho carrega uma história incrível e tortuosa: ex-usuário de drogas, subversivo torturado em 1974, esotérico, Paulo Coelho é um pouco de tudo o que foi numa versão midiática. Mas como esse ser esquisito se converteu no escritor pop, pergunta-se. Respostas demandam entender método coelhiano de produção artística que, aliás, foi fascinante desde o princípio. Ele mesmo conta “aprendi a escrever com Raul Xeixas. Foi fazendo música para ele que eu descobri como ser conciso e direto, sem ser superficial”, e, dono de peculiar arrogância conclui “senão estaria até hoje escrevendo coisas dificílimas que ninguém entende”. Mas houve aperfeiçoamento entre o pretenso empresário de talentos que tentava lugar no capitalismo e o escritor – Coelho tentou ser produtor musical. Um dia, procurou o “maluco beleza” para uma entrevista e do encontro saiu parceiro de série musical. É verdade que o futuro os poria em campos opostos, mas não há como negar o começo. Diria que a universalização, foi o legado de Rauzito para Paulo Coelho que se globalizou, formulando uma literatura sem marcas de brasilidade. Sim, mais do que ninguém no planeta, ele soube assumir a dialética da modernidade universal. Talvez isto explique seu destaque que, óbvio, não poderia deixar de ser também polêmico. 

Em termos cronológicos, o sucesso literário levou Coelho ser um gauche, mas um gauche estranho pois em 2002 foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Entre as razões para tanto nariz torcido é o resultado surpreendente da publicação dos primeiros livros: Arquivos do inferno (1982), O manual prático do vampirismo (1985) até chegar n’O diário de um mago (1987). Da longa série de sucessos, sem dúvida, a reputação de Coelho se divide em antes e depois d’O Alquimista, publicado em 1990. Pois bem, é este personagem fascinante, este cara incrível, que teve seus livros queimados por seguidores do capitão Bolsonaro. E por quê? Porque, junto com personalidades como Leonardo Di Caprio, Sting, Madonna, Cher, entre muitos outros, inclusive uma plêiade de brasileiros, Coelho chama a atenção do mundo contra a política deste governo negacionista, em particular em relação ao meio ambiente. 

Numa postagem nas redes sociais, um casal idoso, marido e mulher, em nome da defesa de Bolsonaro, dia 29 de setembro último, queimou as páginas arrancadas de um livro de Paulo Coelho. Dizendo tratar-se do décimo, o espetáculo macabro recriou no Brasil o ritual nazista de 10 de maio de 1933. Sim na Alemanha de Hitler, fanáticos fizeram uma fogueira pública de escritos contra o regime, lá como cá, isso atesta o significado da intolerância e da incapacidade de convívio com a crítica, seja ela qual for. Em escala mínima, a memória desse feito abominável teve dimensões alarmantes e esclarecedora e por isto merece atenção. De um lado, esta queima revela uma política de ataque à cultura, de agressão à opinião pública livre e independente, mas de outro – e isto é terrível – permite iluminar a resistência aos desmandos que nos colocam como devastadores de florestas. E Paulo Coelho então se apresenta como baluarte de uma luta que, afinal, o traz de volta ao Brasil e aos temas brasileiros no universo. À propósito, e para terminar, vale considerar a conformidade rebelde do próprio Coelho que respondeu: pois é: primeiro compraram e depois puseram fogo. 

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