quarta-feira, 7 de outubro de 2020

CONTANDO A VIDA 315

“ACONTECÊNCIAS”: RUTH GUIMARÃES E AS INGRATIDÕES VALEPARAIBANAS.

José Carlos Sebe Bom Meihy

A palavra acontecência é criação de Ruth Botelho Guimarães... De quem? Ruth Guimarães, mas quem é ela afinal? De onde vem, o que fez, por que destacá-la? Sei que estas questões são frágeis para alguns, exatamente para prezadores de romances, contos, textos drenados das listas de sucessos. Ruth Guimarães é dessas figuras apagadas dos arranjos talhados por quantos esculpem seus deuses segundo a própria imagem e semelhança. Mas, haveria razão subjetiva para isso? E não escapam explicitações capazes de nutrir esquemas preconceituosos, desqualificadores de tipos desiguais como, aliás, demonstra Eduardo de Assis Duarte. Ruth era mulher, negra, do interior do estado de São Paulo – de Cachoeira Paulista – e nunca pretendeu trocar seu rincão por qualquer capital, mesmo tendo cursado Filosofia na USP. Em 1983, na Bienal Nestlé de Literatura, apresentou-se dizendo sou “mulher, negra, pobre e caipira”, e a isso poder-se-ia acrescentar “disjuntada”. Por paradoxal que pareça, Ruth se considerava tributária de Mário de Andrade, e mesmo tendo sido saudada por críticos como Nelson Werneck Sodré, Érico Veríssimo, Edgard Cavalheiro, tais loas nunca a apensaram além de escassas citações marginais.

Seu livro de estreia Água funda, publicado em 1946, foi prefaciado por Antônio Cândido, aliás, isto não deixa de ser irônico posto argumento vazado de alguém que pontificava um olhar menor à consideração dos regionalistas. De toda forma, da mina de Ruth despontaram ainda outros escritos de fôlego como Os Filhos do medo, de 1950, pesquisa original sobre a figura do diabo; Crônicas valeparaibanas, de1992, considerações sobre o folclore regional, e a ficção Contos de cidadezinha de 1996, a respeito dos modos de vida no interior. Pode-se dizer que esse conjunto de trabalhos representa, juntamente com Lobato e outro valeparaibano – igualmente esquecido – Valdomiro Silveira, a essência genuína do gênero regionalista do Vale. Sugere-se, contudo, e não sem sentido, que a própria Ruth foi a escritora que, de maneira mais exuberante, furou a bolha do exclusivismo localista. Fundamenta-se tal indicando que além de trabalhos respeitáveis sobre aspectos universais, Ruth foi tradutora audaciosa de clássicos como Balzac, Dostoievski e Daudet. Não bastasse, escreveu peças memoráveis e de abrangência, como: As Mães na Lenda e na História; Líderes Religiosos; Lendas e Fábulas do Brasil; e com justo destaque, o audacioso Dicionário de Mitologia Grega; isso além de Grandes Enigmas da História; Medicina Mágica: as simpatias; Lendas e Fábulas do Brasil...

É verdade que a profícua produção lhe rendeu Cadeira na Academia Paulista de Letras, mas, isso é raso em vista de merecimentos. A garantia de perplexidade induz perguntar: mas afinal quais os entraves para o reconhecimento ampliado desta autora? Mesmo entre as mulheres (Raquel de Queiroz, Cecília Meireles, Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector) a figuração de Ruth é diminuta; seria por ser negra? Em termos de combate ao racismo, com certeza cabe outra observação fatal, pois nos limites da justiça, tem tocado atenção a Machado de Assis como afrodescendente, e então, por que motivos Ruth não figuraria nesta almejada redenção? Será por ser mulher e, sobretudo, mulher negra do interior? Aposta-se que sim, supondo o formidável esforço para requalificar, em paralelo, Carolina Maria de Jesus. Moradora da capital paulista, a dúvida sobre os destaques entre ambas corre por conta de dois aspectos complementares: 1- o alinhamento estilístico e temático e 2- a leitura política do gênero “diário”. Ruth foi dona de vernáculo escorreito e coerente com os assuntos em voga na intelectualidade convencional. Isso, por certo a constelou em vez de distingui-la, como ocorreu com Carolina. E diário de favelada era algo testemunhal, urbano e explicável na era da “cidade que mais cresce no mundo”. Supõe-se então o paralelo contextualizado, pois mais que enquadramento no rótulo “mulher”, ou “negra”, Ruth insistia em ser “caipira”, aliás, orgulhosa de seu espaço original. Isolou-se e foi isolada, tudo segundo conveniências. Sintetizando de outra forma, Ruth se inscreveu no “popular” sem representá-lo, no sentido da diferença de classe, estilo, modo de pesquisa, filiação literária.

Há, contudo, um fator a mais a ser considerado: a não requalificação de Ruth Guimarães pelos quadros regionais. O que tem feito o Vale para a projeção de sua maior estrela feminina no campo das letras? Nada, absolutamente nada. E neste diapasão recupero certo tique do meu Vale: a ingratidão vestida de silêncio. Sim, o Vale do Paraíba não se olha no espelho do reconhecimento local. Tomando Taubaté como outro exemplo, perguntemos: onde estão homenagens às figuras maiúsculas da expressão local: o que tem sido feito em relação a Mazzaropi, a Hebe Camargo, ao Tony e Cely Campelo? Outra vez me valho do “nada” e ressalto no lamento choroso o brado ignorante e injusto a figuras detratadas como Monteiro Lobato. Tudo isto é triste, mas fica ainda mais lúgubre quando notamos que é crônico, institucional, algo encalacrado na memória valeparaibana. É assim, aliás, que volto a Ruth para repensar a “acontecência”. Acontecência sinônima da falta de respeito. É tempo para acordar?  

 

 

 

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