quarta-feira, 2 de setembro de 2020

CONTANDO A VIDA 313

MÚSICA SERTANEJA: SOFRÊNCIA E GRAÇA. 


José Carlos Sebe Bom Meihy. 

Pensando bem, é muito estranha a percepção do cancioneiro sertanejo em nosso mundão cultural urbano. Visto com mais cuidado, o denso conteúdo expresso por gêneros musicais variantes da raiz caipira, de regra, é interditado, ou ao menos rebaixado como se fosse produto menor, de consumo de um grupo meio esquisito, coisa de suburbano mal adaptado. Foi pensando nisto que se procurou alguma dimensão valorativa, buscado perceber mais do que significados recortados de um plantel hierárquico ou polarizador em um “gosto x não gosto”. A consideração dos temas mais frequentes logo expôs a combinação da dicotomia sofrimento X picardia. Argumento constantes desses cancioneiros, a dor de amor e o gracejo se mostram fatores capazes de dar sentido existencial a uma legenda usualmente reduzida ao breguismo tosco ou, no máximo, à cafonália chic. Mas, pergunta-se, há sentido articulado implícito nesse verso e reverso que mistura aflição e graça, ou, mais contundente: há moral na experiência musical sertaneja? 



Num esforço justificado, pretendeu-se marcar a vocação para um viés filosófico invisível, silenciado na recepção dessa expressão musical. E é prudente oferecer caminho histórico para tal vista. Como se fora contrapartida de um passado de deslocamento territorial mal resolvido, a transferência de contingentes do campo para a cidade sugere um longo processo de adaptação. Mal compreendida a inversão demográfica do meio rural revela uma peleja pela sobrevivência, e assim indica incômodos e desencontros negociados em busca de um estilo sertanejo de vida urbana. Nessa linha, não seria exagero sublinhar o sofrimento recortado nos repetidos desencontros amorosos. Sim, amores não correspondidos se formulam em razão metafórica de cantares que somam uma saudade nostálgica do campo e suas coisas todas. Junto com passarinhos, alvoradas, campos, são compostas loas a amores impossíveis, traições de afetos incompreendidos, enfim um novo e claro mal-estar civilizatório inconciliável. De modo geral, as músicas sertanejas cantam saudade e tristezas, e nelas se recheiam de frustrações, mágoas e desafetos chorados em simpatias remotas e notas musicais lamuriosas. Nesse sentido, aliás, resulta uma explicação básica para o que tem sido conhecido como sofrência. Sim, a percepção dramática dos desacertos é o denominador comum para tantas passagens de desgraças vertidas em desejos de má sorte para os ingratos pares. É como se o campo não se desse bem com a cidade e, em expressão cantada, isto se revelasse como lamento público e personalizado. 



Como resultado surdo de uma espécie de épica cabocla, as entregas apaixonadas e mal resolvidas se mostram como dimensão de desesperos dramatizados na fatalidade de uma realização impossível. É nesse diapasão que emerge a memória desesperada que tem a ruína amorosa como ponto inevitável de extravasamento. Mas, para consolo geral, esta moeda tem outra cara, um reverso compensatório: o chiste ou gracejo. Sim, os melodramas amorosos não anulam paralelos de continuidade, o lado insistente do gracejo gozador. Diria que para cada dor há uma piada musical na mesma medida em que para cada frustração corresponde uma promessa de risada vertida em “causo”. A soma dessas oposições - choro e matreirice - se formula na integração de mensagens que, afinal, juntas, amarram respostas de tipos migrados do ambiente rural para os centros urbanos que, afinal, têm na inviabilidade de realização amorosa a dimensão pândega, e por isto promotora de risos. São graças que vão além da aparente simplicidade narrativa e que merecem ser contempladas como vingança da incompreensão. Os dois aspectos complementares, a desgraça e o pitoresco, resultam em espécie de épica acaboclada e de difícil captação. 



O entendimento da dor afetiva pode ser avaliado pela crescente feminização das intérpretes que, solo ou em duplas, tem revelado o incômodo do acolhimento pelo ambiente dominante, masculino. Por outro lado, a memória da anedota fácil e sutil se dimensiona no masculino, como se coubesse à mulher a sofrência e para o homem o revide. O resultado é a percepção trágico-cômica de experiências não explicitadas, mas vertidas em sucessos de público crescente. Penso, pois em ensinamentos enunciados para um segmento importante, consumidores do mercado que não se contenta em ouvir, mas que em shows multiplicados ganham plateias cada vez mais “sertanejadas”. As letras de canções, em conjunto, revelam um estilo de vida muito mais completo e complexo do que se pensa. E tudo se torna muito teatral, exigente de figurinos, penteados, caras e bocas. O inerente uso de roupas, chapéus, o aferro ao xadrez desenhado em camisas, a permanência das botas como saudade das botinas, o crescente prestígio das festas juninas – agora inscritas em programas de turismo – e a aceitação dos “docinhos da roça”, paçoca, quentão, revalidam uma saudade reprimida, pouco explicada, mas que não se furta à luz e som. É no quesito mnemónico que atua a essência e originalidade do ser sertanejo urbano. Confesso que o exagero da positividade analítica contida nestas linhas responde a um apelo pessoal, esforço de ver uma beleza onde o gosto burguês insiste em negar o cadim de meu mundim que queiram ou não existe e se mostra de uma boniteza que veio para desafiar o futuro.

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