quarta-feira, 12 de agosto de 2020

CONTANDO A VIDA 310

MODERNIZAÇÃO DA CAIPIRAGEM: sertanejos e o telefone. 

José Carlos Sebe Bom Meihy 

Há quem acredite em coincidências. Muitos duvidam, e gente séria: Kardec, Marx, Jung; os árabes já diziam “tudo está escrito”. Certo ou errado, aconteceu de ouvir o mais velho dos sambas gravados, “Pelo telefone”, do Donga, e em seguida tocar “Por telefone não” com a dupla Maiara e Maraísa. Pronto, estava dado o sinal para inquietações. Cem anos entre uma e outra canção. Cem anos. E as duas pareciam se conversar desde o título. Logo tratei de buscar ligações e não demorou para que minha curiosidade armasse uma cilada sedutora: por telefone! Meu Deus, pensei, um século entre uma letra e outra e ambas falando do mesmo aparelho. Daí foi mecânico lembrar de 1969 e nele Jorge Ben Jor com “alô, alô Teresinha, aquele abraço”. A voz inconfundível de Tim Maria, em 86 inscrevia o “Telefone” como uma das mais marcantes de sua saudosa carreira. E veio fácil o trecho de Herbert Viana com os Paralamas do Sucesso cantando em 88 “Quase um segundo”. A sequência prometia continuidades quando me perguntei sobre o significado do aparelho inventado pelo escocês Graham Bell para os/as sertanejos/as. Não poderia de ser de outro jeito, pois a interpretação da dupla feminina é muito desafiadora. Dei asas à imaginação, começando por supor o significado da música do campo adaptada às modernidades urbanas. 

Mania de historiador, logo pensei em periodizar a questão. Foi quando então, meu lado saudoso, de alma interiorana, me fez recuar no tempo, lembrar que ainda menino assisti às demonstrações do que se chamava “moda de viola”. Tratava-se de grupos não profissionais, de gente do campo que cantava em conjunto composto por 3, 4, 5 pessoas. Animando festas religiosas, as cantigas eram longas e arrumadas em vozes sincopadas que se harmonizavam, como definiu Mário de Andrade. Não se pode dizer que eram composições espontâneas, mas estavam livres de tempo de duração. E contavam histórias, ah, como contavam! Os temas do campo eram plenos de passarinhada, flores, cavalos, estradas e muitos luares. 

Filha do tempo, a inversão populacional do campo para a cidade foi exigindo adaptações e o controle capitalista impôs limites que se fizeram determinantes nas gravações. Cada dia mais longe, as modas de viola foram diminuindo e duvido que existam muitas. Em compensação, já na cidade, derivações foram se acomodando merecendo a qualificação “sertanejo raiz”. Mesmo renovada, ainda era reconhecida como “música caipira”, até porque a temática era a saudade nostálgica da fazenda. Falava-se do mundão deixado prá trás, mas com tempo de duração menor, tendo que caber nos limites dos velhos discos de 78 rotações. Ao mesmo tempo, as apresentações aconteciam em auditórios, espaços fechados, já demando aparelhagem eletrônica, microfones, instrumentos cada dia mais aperfeiçoados. Os antigos conjuntos de intérpretes foram encolhendo até que se chegou a um padrão condizente com o gosto do mercado: as duplas. Não se pode dizer que a aceitação era pequena. Não, mas era silenciada por uma certo pudor urbana que não resistiu por muito tempo. 

Essa evolução ia se imponto de maneira a chegar nos anos de 1980 e acontecer a explosão das duplas sertanejas. É fácil reconhecer nessa fase, que pode ser chamada de “rurubana”, a troca da observação do campo pelos ajeites na cidade, aliás é aí que o telefone aparece. Geração ponte, era preciso relativizar a tradição campestre. E haja multiplicação destas parcerias que, com raras exceções, eram masculinas. Sim esse processo foi atravessado por algumas presenças femininas, mas eram poucas como Inezita Barroso e as Irmãs Galvão; ah, e havia pares como “Cascatinha e Inhana”, exceções do padrão masculino. Mais tempo corrido e chegou-se a uma outra geração que derivando dos pais ia se deixando permear por coisas da cidade. 

No final dos anos de 1990 já se falava de “sertanejo universitário” e então reinventava-se o uso da bota, da camisa listrada, melhorava-se muito a qualidade do som e um esquema empresarial marcava esse gênero que passou a abrigar nomes solos. E os assuntos abordados se tornam muito mais românticos, perdendo a determinação dos ares campestres. No lugar, os lamentos individuais se combinaram com acordes antigos, memórias que não deixavam de repontar. Aliás, é importante assinalar que este processo não é linear, nunca foi. A persistência de tradições emergia cá e lá, quase que como contraponto ou reserva de lembranças que não se apagam de vez. 

É neste circuito que o telefone se liga como argumento analítico, ou seja, questionando o significado do aparelho no cancioneiro sertanejo? Um breve passeio pelo repertório pode dizer alguma coisa; vejamos. Considerando apenas os sucessos incontestáveis, não levando em conta autorias, temos uma lista reveladora da modernização da caipiragem. O primeiro destaque desta sequência foi “Telefone mudo” com o Trio Parada Dura; em 88 o Trio Carreiro gravou com ampla aceitação “Chamada a cobrar”, dando passagem para as duplas. Sem dúvida o sucesso definidor se deu com “Pense em mim” de Leandro e Leonardo que adaptaram um reggae de 85 e converteram sertanejo festejado. Em 2003, “Ligação urbana” explode com Bruno e Marrone, e, em 2010, outra vez o Trio Parada Dura volta ao tema com “Telefone Mudo”. Entre as mais apimentadas composições, em 2015 Enrique e Diego gravam “Senha do celular” que caiu no gosto popular. Marilia Mendonça, em 2016 aparece como destaque feminino defendendo – já na linha da “sofrência” – o “Me desculpe, mas sou fiel”, e, finalmente “Por telefone não” de Maiara e Maraisa em 2017. 

Mas afinal, o que pode o telefone, como tema, explicar a respeito da música sertaneja? E a resposta vem pronta, exatamente na medida em que mostra mais que uma apropriação de instrumentos da modernidade urbana e industrial, um meio de negociar o ajuste de um segmento que reelabora sua memória no ambiente que se lhe abriu, e eles se impuseram. Telefone é um exemplo, mas poderíamos tomar outros como: automóvel, caminhão, relógio e fotografia. O que não se deve é rebaixar a carga de memória em trânsito de afetos, do campo para a cidade. Negociações...

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