quarta-feira, 15 de julho de 2020

CONTANDO A VIDA 306

SOMOS TODOS CAIPIRAS; 

José Carlos Sebe Bom Meihy 

Cansado, envolvido em mil problemas acumulados, exausto mesmo, corri quando o telefone tocou. Era o Renato Teixeira em um papo inspirado. Meu céu interior se desanuviou e a conversa fluiu como cantiga entoada numa viola. Diferente de outras tantas trocas nossas, nesta ele tinha um tema: camisa xadrez, roupa de chita, brim riscado e botina. Não precisava mais para me comover. E viajamos na meditação de porquês. Com aquela voz de amigo de infância ele dizia “Zé, precisamos pensar nisto”. O tal “pensar nisto” remetia a explicações de determinados ícones dos quais não abrimos mão. “Pensa um pouco Zé, como o brasileiro gosta de camisa xadrez, como os vestidos de chita são constantes nas festas juninas e no carnaval de São Luiz do Paraitinga. E os riscados das nossas calças não vêm do brim de antigamente?” E continuava “Zé, olha como não abrimos mão das botas, prá homem e prá mulher, bota, botinha, botina não sai de moda, adapta-se, mas está aí”. 

Na mesma cadência eu ia, historicamente, lembrando que podíamos explicar o sucesso da música sertaneja no mesmo impulso explicativo. Interrompendo, entusiasmado, ele me corrigiu “péraí: sertaneja não Zé, caipira mesmo, caipira pô”. E então fomos filtrando casos e declinando situações. O “chuá-chuá” do Renatinho corria solto e eu filtrava alternativas. “Renato, isto é coisa de memória, de memória coletiva, algo transcendente”. O papo não foi curto não, e ao final prometi “olha, vou pensar por escrito nesses devaneios de hoje. Te respondo em uma semana”. E aqui estou eu debruçado nestas mal traçadas linhas, perdido entre as certezas do mais caipira de nossos compositores e uma pequena pilha de livros. Antes de prosseguir, quero que saibam que minha melhor fantasia, sinto-me com uma camisa xadrez bem xadrez, com uma botina sovada e com calça de brim riscado; meu cavalo amarrado na cerca e eu que não fumo com cigarrinho de palha, chapéu de vaqueiro, olhando o estradão, soltando os olhos na eternidade de minha caboclisse... Flaner caipira, na Paris de minha saudade. E que gostoso!... 

Mas nem tudo pode ser só lembranças para um professor de história no exílio de sua essência. A constatação dos símbolos foi fácil, mas os exemplos multiplicados, os lances de cores, o sabor de quitutes, o cheiro de mato, de pasto, tudo, reclamava um outro lastreio de respostas. “Drummondianamente” me restava responder “E agora José?”. Era também como se Guimarães olhasse para mim e exigisse explicações num ardido “mi intende, sô?”. Confesso que passei a semana ruminando o tema como um boi na biblioteca. E minha primeira conclusão remetia a outra equiparação: com os signos da brasilidade produzida. Sempre me impressionou muito o fato de certas tradições serem identificadas como “tipicamente nossas”. O samba, o futebol, a feijoada, a capoeira, a cachaça, juntos ou isoladamente, se constituem em uma espécie de patrimônio referencial do que seria genuíno ou natural do Brasil. Crescemos ouvindo que como a Copa do Mundo é nossa; nossa beleza rítmica está no requebro da gente; o uso das pernas na capoeira ou no esporte dimensionavam um jeito de ser diferente; o sabor de algumas comidas nos distinguiam e igualmente a nossa pinguinha alçaria o pódio consagrado na já internacional caipirinha. E como nos tornamos orgulhosos disto. Nossa! Nem nos faltam teóricos que saúdam com explicações refinadas, abstrações que nos aproximavam de uma suposta miscigenação ideal. Mas, meu Deus, o Renatinho falava de outra coisa, ele se referia a um outro “Brasil brasileiro”. A inerência do mundo caipira plasmado em nossa alma. Desafiador. Demais: camisa xadrez, brim riscado, vestidos de chita. 

Sabe, até doeu pensar em uma resposta acadêmica. Mas, cheguei a um ponto: há um brasilzão urbano, industrial, viajado e rotulado turisticamente. Fabricamos uma identidade que serve para exportação e que muito agrada à classe média e a elite. Tudo verdade, tudo facilmente perceptível. Mas, também tem um outro brasilzão que não se deixa falsear. É como se chegássemos a uma espécie de hora da verdade. Afinal quais os nossos valores verdadeiros? Foi quando me veio à cabeça o texto de Eric Hobsbawum sobre a “invenção das tradições”. Diz o historiador que tudo que julgamos antiquíssimo, sobre as solenidades da realeza britânica por exemplo, é algo bem mais recente, criado no século XIX e consagrado no XX. Antes que minha cabeça desse um nó, busquei argumentos que confirmam a jovialidade das nossas tradições propaladas como identidade nacional. De modo geral, pode-se localizar na “Política da boa vizinhança”, na nascente dos anos de 1940 – e viva Carmem Miranda – a raiz dessas invenções. E assim criamos além do samba e do futebol, a ilusão de que a feijoada, a capoeira, a caipirinha, tudo, como isso estivesse “no nosso sangue”. 

Em termos historiográficos, estaria correto acatar a “moderna tradição” como artefato criado por mecanismos modernizadores da sociedade capitalista com vocação internacional. O que se aventou a partir daquele telefonema, porém, foi algo mais profundo: somos todos caipiras de raiz. Sim, caipira Pirapora, mesmo... O que em essência está em nosso sangue é o xadrez da camisa e o brim riscado que se reafirma a cada São João, mas que reponta nas rodas de modinhas na televisão, no carnaval, na celebração do folclore, nas festinhas infantis. É chique ver as moçoilas de vestidos estampadíssimos nos dias de inversão do cotidiano – carnaval e festas juninas – mas qual delas abre mão de uma bota elegante, ainda que feita na Austrália? E qual o galã da cidade que não tem bem guardada uma camisa xadrez? 

Pois bem, é chegada a hora da verdade. O Brasil se modernizou sim, virou competitivo, figuramos entre as dez maiores economias do mundo. Aprendemos a ser urbanos, somos eletronicamente aparelhados, podemos discutir temas em níveis elevados, viajamos. Tudo certo, mas genuíno mesmo, realmente o que nos une e inconscientemente não abrimos mão é o que se plasmou no nosso espírito natural. E é lindo supor os mecanismos transcendentes que não dependem de políticas objetivas, de consciência depurada por teorias ou de motivações externas. Mesmo a contrapelo do exercitado como verdade acadêmica, de verdade, não abrimos mão do que não sai de nosso gosto: a camisa xadrez, o vestido de chita, o tal riscado de brim e a botina. Somos todos uns caipiras. Resta nos descobrir...

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